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Adelice Souza

Edufba: Fale sobre a sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.

Adelice Souza: A academia é um lugar de encantamento. Morada da criação e da escrita. Há uma forte relação da escritora com a doutora em artes cênicas formada por esta peculiar UFBA, com a toda expansão que só a Bahia compreende. É a minha casa de formação, onde pude me graduar em Direção Teatral e me pós-graduar em Dramaturgia, tendo a honra e o luxo da orientação de Cleise Mendes. Escrevo mais porque a Escola de Teatro existe. A nossa profissão deve sempre nos encantar.
No mais antigo tratado hindu do teatro, o Natyasastra, a palavra poética e artes cênicas e a música eram indissociáveis. A escrita tem cena, tem música, tem poesia. A minha também tem muita Natureza. Quero escrever sobre a natureza. A de fora e a de dentro. Quero que a criança leitora se aproxime destas naturezas através da simplicidade.
Minha trajetória aproximou-me da Floresta Amazônica. E estou nessa floresta: ensinando, aprendendo, trabalhando como professora de Atuação e Performance na Universidade Federal do Acre (UFAC), praticando yoga e escrevendo novas prosas e dramaturgias. Neste momento, começo a desenvolver um projeto de teatro, yoga e literatura voltado para os pequeninos. E quero publicar o livro de uma linda criança poeta que eu batizei na fogueira, o Cleu Manchineri. Pequeno escritor que fala do lugar que nasceu, Xapuri, terra do seu herói Chico Mendes.

 

Edufba: Quais caminhos te levaram a criar histórias infantis?

AS: Caminhos de muitos mistérios. Não sou mãe e minha relações com os pequeninos nasceu com a literatura. Logo que adentrei as ficções deste mundo mágico infantil, através do livro Adestradora de Galinhas, o São João Batista, enviou-me de presente dos céus, o Janjão, meu filhote cão e as minhas quatro irmãs foram engravidando, povoando minha família de crianças. O livro é ilustrado por uma criança que cria galinhas e editado em papel reciclado, de olho aberto à sustentabilidade. Adestradora de Galinhas venceu um edital que o levou para 40 mil crianças leitoras de escolas públicas. As pessoas do interior da minha Bahia são alfabetizadas lendo o meu primeiro livro infantil. Isto é uma glória íntima.
Ter nascido em Castro Alves presenteou-me com o convite da Editora Caramurê para escrever uma biografia para crianças, o Cecéu, poeta do céu. O livro sobre o poeta condoreiro tem me levado a falar dele às crianças de vários lugares, da Amazônia a Portugal. Do seu pensamento poético de Natureza e Liberdade propondo diálogos sobre o racismo, a dor e o amor.
E agora vem o terceiro livro infantil, o Assanhaço azul, contemplado como o primeiro livro para crianças do Edital Judith Grossmann da Edufba. Um livro muito simples que afirma a vida dos animais, que prega o ahimsa, o cultivo da não-violência. Este poder monumental da não-violência que nos coloca em outro patamar de civilização. Assanhaço azul desloca os olhares a partir do objeto ‘badogue’, que pode ser utilizado como arma, mas, no contexto infantil, deve ser compreendido como brinquedo.

 

Edufba: Como suas memórias interferiram na criação da narrativa?

AS: Estou presente em tudo que escrevo. A minha literatura fala dos assuntos do meu íntimo. Eu amo brincar. Brincava de badogue na infância para acertar o alvo em latas e isso está lá em “Assanhaço azul”. Cresci na cidade de Castro Alves declamando poesias do autor em datas comemorativas e brincando de fazer teatro e dramatizações sobre os seus amores e batalhas. Haverá sempre a junção da memória com a invenção em tudo que me proponho a escrever. Creio, como dizia o Valéry, que toda escrita é uma narrativa de si.
“Assanhaço azul” nasceu de um presente que comprei para minha segunda irmã predizendo um futuro filho. Logo depois, o Felipe nasceu. O livro e o personagem também são dedicados a ele. Ali também presto homenagem aos mestres populares através de Seo Expedito Seleiro, grande artesão do Sertão do Cariri, com suas lindas bolsas e sapatos de couro que me enfeitam. Mas tudo isso são ornamentos em prol de uma terra mais azul, para fazer surgir um passarinho, o assanhaço, que aparece para apontar nossos caminhos de humanidade possíveis. Precisamos distinguir acidentes de crimes cometidos ao nosso ecossistema. Se continuarmos matando passarinhos, rios, árvores, gente, onde vamos parar? Estamos em plena desconexão com nossa dimensão transcendente.

 

Edufba: Num cenário em que as crianças têm menos contato com a natureza, qual a importância de um livro que se estrutura a partir da aprendizagem e experimentação do mundo real?

AS: Como arte-educadora, preocupo-me bastante com o uso demasiado de tecnologias por parte dos adultos e crianças. Estamos perdendo nossas capacidades motoras, estamos ficando preguiçosos e com uma má educação física. Não alongamos, tomamos remédios, estamos cheios de dores. Mas ao mesmo tempo, sei da necessidade das novas atualizações de softwares e que ainda não aprendemos a estar mais distantes das máquinas. Por isso situo a história nas férias, no reino exemplar das brincadeiras e dos seus aprendizados com o corpo e com a natureza. Apreendemos pelo corpo e através do corpo. Insistirei neste tema sempre. Apesar de três livros infantis publicados, já tenho uns outro cinco prontos. Todos seguem este mesmo percurso: que as crianças possam aprender a viver no corpo a corpo com os bichos, as árvores, as estrelas e os seres divinos das cortes terrestres e celestiais.

 

Edufba: De onde surgiu a ideia de usar os desenhos do Apolo Matos Abreu para compor a obra?

AS: O Rogério Duarte, rei-súdito da Tropicália, que era meu amigo e professor de sânscrito, esteve comigo na estreia de meu espetáculo resultado do mestrado com Artes cênicas e Yoga, o Kali, senhora da dança. No foyer do Teatro Gamboa Nova, na Galeria Jayme Figura, acontecia uma exposição do Apolo. Rogério viu aquilo, teceu comentários elogiosos e ficou bastante impressionado com o traço da criança, que é filho de Agamenon de Abreu, formado pela Escola de Teatro da UFBA e então aderecista do meu espetáculo. Não deu outra. Convidei Apolo pra fazer as ilustrações de Assanhaço azul. As ilustrações têm alguns achados geniais próprios da vastidão criativa da criança. Felipeta Badogueiro correndo com as pernas desenhadas em espiral é uma delas. Gosto de estar perto do frescor criativo das crianças. Desde criança estive envolvida com arte. Apolo cresceu pelos palcos e camarins.

 

Edufba: Como você percebe a relação entre a arte e a vida?

AS: A arte é uma filha querida da vida. Aquela aparecida, que se enfeita, que se colore, que inventa. A arte precisa afirmar a vida, posto que ela é sua mãe, sua guia. Devemos fazer arte para afirmar a vida, sempre. Busco falar de amor, de propor amorosidades neste solo infértil. Seguir o pensamento da não violência com nenhum tipo de vida, não compactuar com isso, nem através da alimentação, de nenhuma forma ser condescendente com criações industriais de animais. Seguir Gandhi em sua pregação de ahimsa, a não violência, repetidamente, até aprender. Comer longe das indústrias e das farmacêuticas. Ter uma alimentação com vegetais e frutas. E cantar. E bailar para que o movimento e som estejam na palavra e na criação. E gerar livros bons.

 

Edufba: Deixe uma mensagem para os seus leitores e leitoras.

AS: Eu sou muito religiosa. Amo os estudos das religiões. Batizei-me na Igreja Católica. Mãe Stella de Oxossi disse nos búzios que sou de Iemanjá. Faço trezenas e orações para os santos e santas, canto mantras e tenho a crença indígena ancestral que há Espírito em todo ser vivo. Sou fardada no Santo Daime, uma doutrina musical que nasceu no seio da Floresta Amazônica e, num dos seus hinos, parte integrante do Hinário Sois Baliza, do Germano Guilherme, é sugerida esta instrução:

“Vamos ter amor
Vamos ter amor
Vamos ter amor
A quem nos ensina”.
Ocorreu-me esta mensagem no dia dos mestres maestros. Vamos ter amor aos ensinamentos que nos chegam através da Natureza e de pessoas como professores, escritores, artistas e dos mestres populares. Os ensinamentos puros, finos, que são veículos de pureza e verdade, que resplandecem como a beleza das flores. É necessário sempre cultivar flores para ter bons aromas em nossos jardins.

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