Início / Diálogos / Emiliano José

Emiliano José

Edufba: É uma honra tê-lo em nosso Diálogos. Para aqueles(as) que ainda não o conhecem, conte um pouco da sua trajetória pessoal, profissional e acadêmica.
 
Emiliano José: Sou jornalista e escritor. Estudei sempre em escola pública. Meu último percurso acadêmico: doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Autor de várias biografias, entre as quais a de Carlos Marighella, Carlos Lamarca, padre Renzo Rossi e Waldir Pires. Autor de série sobre a ditadura, denominada “Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento”, já no quinto volume. Livros sobre jornalismo, vários; últimos: “Balança mas não cai” e “Os comunistas estão chegado”. “As asas invisíveis do padre Renzo” resultou em filme, direção de Jorge Felippi, roteiro meu. “A última clandestina em Paris”, também, eu no roteiro, Jorge Felippi na direção. Dei aula na Facom durante 25 anos. Atrasei-me para começar a fazer a Facom por conta de quatro anos de prisão – entre 1970 e 1974 fiquei preso pela ditadura na Penitenciária Lemos Brito, na Mata Escura, em Salvador. Só aos 30 anos iniciei os estudos universitários. O livro “O cão morde a noite”, autobiografia a cobrir de minha infância à saída da prisão, tem segunda edição prestes a sair, pela Edufba. “Os comunistas estão chegando”, também a ser lançado brevemente pela Edufba. Em fase final, prestes a ser enviado à editora, “Rio de sangue”, sexto volume da série Galeria F. Para complementar, fui vereador por Salvador, deputado estadual e federal pela Bahia. Também, secretário de Comunicação do Ministério das Comunicações, no ano de 2015. Superintendente adjunto do Incra na Bahia. Diretor de Pesquisa da Assembleia Legislativa da Bahia.
 
 
Edufba: Há algum tempo, foi lançado o seu livro de memórias autobiográficas “O cão morde a noite” que também aborda o período militar. Como a obra “Balança mas não cai”, também de memórias autobiográficas, torna-se um diferencial diante da outra?
 
EJ: De alguma forma, o “Balança mas não cai” dá sequência ao “O cão morde a noite”. Este, mais amplo, cobre minha trajetória da infância à minha saída da prisão. Preso em 1970, saí no final de setembro de 1974. Minha atividade como jornalista profissional tem início em outubro de 1974. No “Balança”, detalho essa minha chegada ao jornalismo. Logo ao sair da prisão, comecei a dar aulas de História num cursinho. E um dos donos desse cursinho, Emanoel Macedo, me pergunta se queria ser jornalista. E como queria. Nunca experimentara trabalho jornalístico profissional. Exercitara jornalismo nas duras condições da prisão, editando um jornalzinho manuscrito, meia folha de papel ofício, notícias compiladas durante o dia num transistor, resumidos ali pelas 18 horas, distribuído aos presos nas várias celas, sem que os guardas percebessem, e o compromisso do preso da última cela era queimar o exemplar. Macedo então me indica ao chefe de Reportagem da Tribuna da Bahia, José Barreto de Jesus, e eu lá fui. De foca, passei logo a repórter acreditado. O período coberto pelo livro, incluindo as matérias escritas por mim, é de outubro de 1974 ao início do segundo semestre de 1975. O mais empolgante trabalho na Tribuna foi a série sobre a libertação das colônias africanas da dominação portuguesa - essa série chamou a atenção de Césio Oliveira, chefe de reportagem do Jornal da Bahia, para onde fui em condições salariais melhores. No novo jornal, outras matérias importantes, com destaque para a entrevista com dom Jerônimo de Sá Cavalcanti, do Mosteiro de São Bento e para reportagem sobre Hospital Juliano Moreira. É um livro sobre o cotidiano do jornalismo.
 
 
Edufba: Ao revisitar as suas memórias nessa época, houve alguma lembrança que você sentiu desafiado de alguma forma a registrar no livro?
 
EJ: É uma revisitação, um exercício de memória, uma volta aos arquivos. Conservei boa parte do material produzido por mim. Evidente: não se reproduz o passado. Você faz uma leitura sempre nova do acontecido. Um novo olhar, mais ampliado, ao menos em princípio. O desafio de entender a quente, por exemplo, no período, a libertação das colônias africanas sob domínio português, libertação feita sob a luta armada, não foi pequeno. Tais colônias se libertaram inteiramente algum tempo depois da série escrita por mim. Foi um exercício rico para mim. Conhecer, reconhecer Salvador com as muitas matérias de Cidade, outro. Saber das tragédias das enchentes, encostas desabando. Como jornalista ainda novato, embora já chegando quase aos 30 anos - dos 24 aos 28 anos passei preso - me impressionava a “linha de produção” jornalística, a rapidez com que o jornalista tinha de produzir, duas, três pautas por dia, sem apelação. Houve um certo desencantamento do mundo ao embrenhar-me nas redações. Sem que perdesse a paixão pelo jornalismo. O jornalista é um trabalhador, vive sob uma linha de produção. Aproximei-me de algumas instituições, entre as quais a Igreja Católica, tendo a chance de compreender a complexidade delas. Na Igreja Católica, pude chegar perto de dom Jerônimo de Sá Cavalcanti, e saber de um autêntico profeta, tal e qual a Igreja compreende. A matéria feita com ele teve grande repercussão, por ter defendido o aborto, e contrariado tanto a Ordem Beneditina quanto a própria CNBB. O jornalismo, sem exagero, se levado a sério, é um desafio permanente, sobretudo porque cotidianamente, ao interpretar os acontecimentos, e não há jornalismo sem interpretação, você é questionado sobre a verdade, utopia a ser perseguida sempre.
 
 
Edufba: O livro “Balança mas não cai: memórias do jornalismo” mostra um pouco da realidade vivenciada pelos jornalistas na ditadura militar, marcada como um período de censura e violência contra aqueles que não apoiavam o regime. Como jornalista que viveu esse momento, qual a sua opinião diante da atual perseguição e intimidação que alguns colegas de profissão vêm sofrendo ao tentar realizar o seu trabalho?
 
EJ: A ditadura é uma espécie de espectro a sobrevoar a sociedade brasileira. Volta e meia, o espectro volta. Como recentemente, desde o golpe de 2016. Em 2018, a população brasileira elegeu um defensor da ditadura, admirador de torturadores, como presidente. Desde o primeiro momento, Bolsonaro não escondeu sua disposição de agredir jornalistas, tentando sempre intimidá-los. Já se disse: Bolsonaro só não é um ditador porque não tem força para tanto. Pudesse, e ele comandaria um regime autoritário violento. Não tem condições. Mas faz tudo para inibir os jornalistas, de todos os modos possíveis. Felizmente, tem havido resistência dos profissionais. Não me iludo com a grande mídia empresarial. Houve, por exemplo, uma atitude até positiva da Rede Globo, opondo-se ao negacionismo do presidente da República, causador de milhares de mortes pelo covid. Se você, no entanto, vai ao fundo de sua linha editorial, vai encontrá-la, e as outras redes, perfeitamente afinada com a proposta econômico-social do presidente, a retirar direitos, a causar a inflação descontrolada, a provocar desemprego assombroso, a privatizar, a precarizar relações trabalhistas; Assim, há de se distinguir os jornalistas, e as grandes redes. Aqueles, esforçam-se para trazer a verdade à tona. As grandes redes, sempre tentando afirmar o projeto neoliberal, de trágicas consequências para o povo e a Nação brasileira. Os jornalistas, não obstante as inúmeras dificuldades, e tendo de trabalhar nessas empresas, têm o dever de insistir para divulgar a verdade da exploração do nosso povo.
 
 
Edufba: O livro, antes de ser lançado na versão impressa, foi primeiramente lançado como e-book. Como jornalista, que desafios e motivações você visualiza para quem trabalha atualmente na área e sente a profissão cada vez mais atravessada por esse universo digital e conectado?
 
EJ: Bem, além de tudo, há de se considerar uma questão geracional. Claro, alguns da minha geração podem ser, e são, experts no mundo digital. Eu sou dos que enfrentam dificuldades. Dos que tropeçam nesse novo mundo, não obstante tenha de seguir a caminhada. É um admirável mundo novo, irrecusável, por evidência. Tendo noção disso, resolvi encarar o mundo do livro digital. Já lancei dois: este e “Os comunistas estão chegando”, em fase final de impressão também pela Edufba, segunda fase da série #MemóriasJornalismoEmiliano iniciada em maio de 2019, escrita diariamente pelo Facebook. Sou dos resistentes. Defendo a coexistência pacífica entre o livro impresso e o livro digital. Não tenho números à mão. Mas vou insistir na luta pela sobrevivência do livro impresso. Quem sabe, um mecanismo de defesa. Adoro tocar um livro, folhear um  livro, e pecado dos pecados, rabiscar, anotar no livro lido por mim. Será um atraso? Será conservadorismo? Não sei. Mas não abro mão do livro impresso. Evidente, para pensar a profissão de jornalista, tudo está mais fácil com o mundo digital. Você escreve, é alertado para um erro, vai lá, corrige. Antigamente, você escrevia e se errasse só amanhã corrigia. A notícia morre em segundos, tudo é em tempo real, ou pretensamente em tempo real. É outro mundo, e ele nos fala, outra vez: “Decifra-me ou devoro-te”. Tentando sobreviver. Não ser devorado.
 
 
Edufba: Finalizando a nossa entrevista, que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?
 
EJ: Todo autor, se escreve, pretende ser lido. Não ser elogiado. Ser lido. E se lido, criticado. A crítica ajuda o escritor, ajuda, tenha certeza. O elogio, não. Este pode inebriar o autor, levá-lo a se iludir, a descansar. Trago, nesse livro, o cotidiano do jornalismo de um tempo já passado. Não há mais vestígios dele numa redação. Nem redações como aquelas há mais. Interessante perceber como se movia um mundo sem celulares, sem internet, um mundo de máquinas de escrever, um mundo de telefones, de telex, notícias apuradas com muito mais dificuldade, sem tanta velocidade. Gostaria que tivessem a paciência de visitar esse tempo - nele também há coisas interessantes. Há vida, mesmo na ausência dos mecanismos digitais. Nem se diga melhor. Também não se diga pior. A vida seguia, e foi a partir dela, das conquistas daquele tempo, o surgimento desse atual admirável mundo novo.

Balança mas não cai: memórias do jornalismo

Autor(a): 
O autor desvenda o mundo do jornalismo a partir da sua perspectiva e trajetória profissional, entre o segundo semestre de 1974 e meados de 1975. Um mergulho nas redações, nos aprendizados, nas fontes, nas relações entre editores e reportariados e tantas outras vivências no percurso de formação como profissional jornalista. 

O cão morde a noite

Autor(a): 

A obra transita entre o sonho e a realidade, a poesia e a crueldade, a inocência e a descoberta do mundo, nunca o desencantamento dele. O texto toma o(a) leitor(a) pela mão e revela os caminhos de uma infância muito pobre do protagonista Emiliano José, até novembro de 1970, quando é preso durante a ditadura militar. O(a) leitor(a) experimentará o horror junto com ele. Sobrevivente, passa a viver a eternidade de quatro anos preso, o dia a dia cinzento, esmagador e a gigantesca clepsidra. Quando sai de cena para dar lugar aos companheiros de prisão e suas histórias, tão ou mais ricas, surge o cotidiano de cadeias, principalmente da Galeria F da Penitenciária Lemos Brito. Assim, testemunha-se a prosaica e rica convivência de tantos prisioneiros políticos, angústias e alegrias. Um livro de memórias, autobiográfico, coabitado com seus parceiros de jornada.

Acompanhe as Novidades

Cadastre seu e-mail em nossa newsletter

Siga a Edufba
nas redes sociais

instagram