Início / Diálogos / Agnes Mariano

Agnes Mariano

Edufba: Conte um pouco sobre sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.

Agnes Mariano: Eu nasci no interior de São Paulo, em Ibitinga, e convivi nos meus primeiros anos com os parentes ítalo-paulistas do meu pai. Ainda muito nova fui morar em Salvador, terra da família afro-baiana da minha mãe, natural de Ilha de Maré. Participando de mundos tão distintos, desde cedo percebi a riqueza e desafios das diferenças culturais. O hábito da leitura me levou a desenvolver fluência na escrita. Cursei Jornalismo na Faculdade de Comunicação da UFBA (1996), onde descobri também a pesquisa científica. Depois de graduada, conciliei por alguns anos jornalismo e universidade, trabalhando como repórter, fazendo mestrado em Comunicação na UFBA (2001) e dando aulas de Jornalismo. O livro “A invenção da baianidade” é resultado da minha pesquisa de mestrado. Em 2008, mudei para São Paulo e lá fiz o doutorado em Comunicação na USP (2013). Vivo em Minas Gerais desde 2016, trabalhando como professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Edufba: A escolha das letras de canções para estabelecer esta “Invenção da Baianidade” é interessante. Por que músicas e não outro tipo de registro artístico cultural para criar essa narrativa?

AM: Inicialmente, eu tinha pensado em utilizar outros materiais. Na graduação, fiz uma monografia a respeito das fotos de Pierre Verger sobre a cultura afro-baiana. No mestrado, tentei trabalhar com reportagens e fotos de cartões postais, mas a pesquisa não rendia. Não foi propriamente uma questão de escolha. Em determinado momento, eu reconheci, como pesquisadora – partindo de uma sugestão do meu orientador Albino Rubim -, que as canções eram um material mais rico, abundante e de grande repercussão na abordagem do tema da pesquisa: a identidade cultural baiana.

Anos depois, já no doutorado, passei a entender melhor a importância dos gêneros orais. É a oralidade que permite à escrita existir. Todos os povos desenvolveram expressão oral, mas nem todos têm escrita. Não existe escrita sem oralidade. Somos um país de letramento recente e em lugares como a Bahia a força da oralidade é ainda mais evidente. Especialmente se estiver associada à música. As canções conjugam várias dimensões expressivas: oralidade, poesia, ritmo, melodia. Entre nós, elas alcançam uma quantidade muito maior de pessoas que livros e textos e contribuíram de forma expressiva na consolidação do imaginário sobre a Bahia e o Brasil. São muitas as canções de enorme sucesso que descrevem, qualificam, caracterizam o modo de ser dos baianos. Então, mesmo sendo eu uma pessoa fortemente influenciada pela escrita, reconheci que, neste caso, as letras ditas, cantadas e repetidas oralmente eram um material mais significativo. Ainda assim, o livro incorpora também relatos de viajantes, romances, entrevistas e dialoga com autores da Antropologia e História.

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Edufba: A partir de suas pesquisas e estudos para construção do livro, você acredita que a criação de um imaginário que extrapola o real foi negativo para a cultura baiana?

AM: Todas as identidades são discursos e performances. Elas tangenciam as nossas experiências concretas, mas também fabulam, inventam e simplificam o que é complexo. Nem todos os paulistas são profissionais eficientes e ardorosos seguidores das regras estabelecidas. Nem todos os mineiros são conciliadores habilidosos e devotos. Além disso, ninguém é só uma coisa. Temos muitas identidades e elas não são estáticas. Todos somos muitos e estamos em permanente mudança. Ou seja, qualquer discurso identitário extrapola o real.

O que as identidades fazem é sinalizar para nós sobre condutas valorizadas em nosso grupo cultural, elas nos falam de expectativas com as quais precisamos negociar. Assim, claro que a baianidade vendida para atrair turistas, cantada nas canções, descrita em romances, pintada e fotografada sempre foi e será uma simplificação. Não esgota o que é ser baiano. Em certa medida, esse imaginário nos prejudica, pois precisamos continuamente nos lembrar e provar que temos outras habilidades e vocações além da celebração, alegria, fé, despojamento. Que, na vida real, também podemos ser eficientes, metódicos, inovadores, responsáveis, profissionais. Por outro lado, não podemos esquecer que muitas dessas ideias associadas à Bahia, como as que citei, são positivas. Além de outras, também inspiradoras: generosidade, comunhão, capacidade de conviver, otimismo, sincretismo, criatividade. Inspiradoras para baianos e não baianos que continuam nos procurando por conta desse imaginário. Em 2019, Salvador foi o principal destino turístico do Brasil. Gostemos ou não, a baianidade prossegue sendo uma utopia que faz sentido para muitas pessoas.

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Edufba: Um dos objetivos da obra é desconstruir os estereótipos criados sobre a identidade baiana?

AM: Um dos objetivos foi entender que estereótipos são esses, quais seus contornos e porque eles fazem sentido para tantas pessoas. Todos conhecemos pessoas que repetem comportamentos nocivos escudando-se na ideia de que agem assim pelo fato de serem baianos, cariocas, gaúchos, etc. A mesma lógica está presente em comportamentos associados a gêneros e raça. Como se o fato de ter nascido com o sexo masculino ou feminino nos obrigasse necessariamente a ser, agir, pensar de determinada forma. Não podemos viver sem as identidades, mas se não negociarmos, elas podem ser amarras. A baianidade é cheia de ritos, prescrições, valores. Fazer parte de uma tradição tão rica é maravilhoso, desde que saibamos dialogar com ela quando e do modo que desejarmos. Posso ir ao Bonfim um ano e não ir em outro. Posso adorar dendê e deixar de gostar. Posso ser roqueira e detestar samba. Posso ser baiana e não ir à praia. Nada disso nos faz mais ou menos baianos. Além disso, se não refletirmos, vamos reproduzindo comportamentos, assumindo como nossos, valores incoerentes. No livro, reflito sobre ideias cristalizadas que encaramos como naturais. Por exemplo, a antiguidade e pioneirismo como um valor em si mesmo, tão presente no discurso a respeito da “primeira capital do brasil”. É justo que o pioneirismo sempre confira primazia? Quem chegou antes merece respeito ou regalias, prioridade, privilégios?

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Edufba: Qual a importância de uma discussão sobre construção de identidades num período em que há tanta desinformação?

AM: Tenho pesquisado sobre as relações entre memória e identidade. Estou convencida que, ao olhar para o passado – seja para os fatos marcantes para o nosso grupo cultural, seja para as experiências vividas pessoalmente -, somos guiados pelos valores e interesses do presente, pelas nossas identidades. Assim, a memória seleciona, imagina, omite. Entender isso é um movimento importante e difícil: que a leitura do mundo, narração e interpretação dos fatos sempre varia em função dos nossos pertencimentos. Basicamente, ninguém quer construir uma narrativa que o prejudique, na qual seja vilão. No Brasil contemporâneo, vivemos uma disputa acirrada de memórias e identidades, entre progressistas e conservadores. Cada grupo tenta vender como verdadeira a sua versão, desconsiderando que, para os que possuem outras identidades, são outras as memórias e interpretações. Não haverá diálogo enquanto não ouvirmos mais uns aos outros, com paciência e empatia.

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

Edufba: Deixe uma mensagem para os seus leitores e leitoras.

AM: O meu livro trata da experiência cultural relacionada a Salvador e ao Recôncavo. Para mim, o que define mais fortemente esse contexto é a contribuição africana. Talvez por isso, por ser tão afro- brasileira, a Bahia sempre foi vista como um lugar importante para se entrever caminhos de convívio entre diferentes grupos étnico-raciais. De fato, na Bahia é perceptível entre os negros uma autoestima incomum, que, em outros lugares, já foi esmagada pelo racismo. Os negros baianos já conquistaram muitas coisas, mas o desequilíbrio ainda é evidente. Os espaços de poder prosseguem privilegiando os brancos ou pardos socialmente brancos, seja na mídia, política, universidade, artes, empresas, saúde, judiciário. Nesse sentido, é urgente abraçarmos uma perspectiva antirracista que envolva muita facetas. Pessoas brancas precisam parar de se comportar como se o debate étnico-racial não lhes dissesse respeito, como se só negros tivessem “raça”. Não existem raças na espécie humana, mas todos somos lidos e tratados em função do nosso fenótipo. Pessoas brancas precisam reconhecer que sempre receberam privilégios por serem brancas e fazer algo a respeito disso. A mesma lógica que inferioriza os negros coloca os brancos num patamar superior.

Não superaremos o racismo sem enfrentar o tema da branquitude. Precisamos nos comprometer com a memória dos conhecimentos, saberes e tradições africanas, das inúmeras expressões culturais e realizações afro-brasileiras, mas também com a memória do horror da escravidão, que foi apagada e permanece silenciada entre nós. Superar estereótipos é reconhecer que na “terra da alegria” também há muita dor; que pode haver racismo mesmo entre os que “sobem a ladeira do Curuzu”. Quem sabe, no futuro, “os olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo onde os escravos eram castigados” e a Bahia tenha algo importante a ensinar sobre convívio e respeito. Então, a nossa alegria será real e poderemos nos orgulhar de uma “Bahia que vive pra dizer como é que faz pra viver”.

Acompanhe as Novidades

Cadastre seu e-mail em nossa newsletter

Siga a Edufba
nas redes sociais

instagram