Bruna Frascolla Bloise
Iniciando os trabalhos do Espaço do Autor em 2017, pegamos carona nas diversas festas de cunho religioso que ocorrem na cidade de Salvador neste período e a comemoração do Dia Mundial da Religião, no dia 21, para conversar com Bruna Frascolla, filósofa, autora responsável pela tradução de “Diálogos sobre a religião natural” de David Hume. Nesta edição de janeiro, a tradutora e mestra em Filosofia fala sobre a complexidade e o desafio de traduzir obras, o mercado editorial de traduções no Brasil e, o debate contemporâneo na esfera pública sobre a existência de Deus, temática discutida por Hume na obra que a autora traduziu. “Diálogos sobre a religião natural” foi lançado pela Edufba em 2016, escrito por David Hume (1711 – 1776) que foi um filósofo, historiador e ensaísta escocês que se tornou conhecido pelo seu empirismo radical e ceticismo filosófico. Nos Diálogos, personagens de Hume debatem uma série de argumentos para a existência de Deus e os argumentos cujos proponentes acreditam que através do qual poderemos vir a conhecer a natureza de Deus. Neste volume constam cartas desses dois períodos de revisão textual (i.e., 1751-63 e 1776) onde Hume aluda aos Diálogos ou a discussões teológicas.
Por Pablo Santana
Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional e acadêmica. Fiz bacharelado em Filosofia e Mestrado na Universidade Federal da Bahia, e desde 2015 curso aqui também doutorado na mesma área. Fui professora substituta do Departamento de Filosofia da UFBa por dois anos, tendo dado aulas de Lógica, Introdução à Filosofia e Filosofia da História. Em setembro de 2016, você lançou a tradução do livro Diálogos sobre a religião natural pela nossa editora. Como surgiu a proposta de estudar Hume e traduzir esta obra? Na época, dei por óbvio que seria historiadora da filosofia, e a praxe demanda que me especialize em um autor. Dado que eu ia ser especialista em um autor, isso queria dizer que eu teria que passar muito tempo lendo-o. Então eu escolhi um que escrevesse bem e que fosse uma delícia de ler, de modo que eu não me cansasse nunca. E está para nascer filósofo que escreva melhor do que Hume. Na verdade, foi o que o salvou: como ele era “o infiel”, nunca foi aceito numa universidade britânica; assim, escreveu best-sellers e viveu disso muito bem. Só escreve como Hegel quem tem a vida ganha. Tive a ideia de traduzir os Diálogos no meu mestrado, que foi sobre essa obra. É tão bonita, e estava esgotada no Brasil, além disso, há uma edição britânica bem completa onde constam em rodapé os parágrafos omitidos dessa obra que foi feita para enganar a censura religiosa. Nenhuma edição em português os tinha, e esta da Edufba é a primeira. Como a obra tem um histórico conturbado de redação, acrescentei ainda cartas de Hume que mostram isso. Quais foram os desafios que você enfrentou ao fazer a tradução de Diálogos sobre a religião natural? Eu aprendi a traduzir com essa obra. Isso, por si só, é desafio. Eu gostaria muito de ter lido a Escola de tradutores, de Paulo Rónai, antes de ter começado, porque eu teria tido menos trabalho para tomar as decisões que tomei. Por exemplo, o leitor comum acha que fidelidade se mede sobretudo por literalidade, mas veja-se o caso de um romance epistolar em que mocinho e mocinha vão ganhando intimidade: no original anglófono, é you o tempo inteiro, mas em português mudamos os pronomes à medida em que ganhamos intimidade; assim, o bom tradutor inicia-se com “o senhor” e terminar em “você” ou “tu”. O que interessa, mesmo, é a fidelidade, e fidelidade não se consegue sempre com literalidade. É necessária, então, certa sensibilidade para tomar decisões. Esse exemplo que tomei de Rónai é literário; e a filosofia do séc. XVIII, que é extramuros, ou seja, é independente da universidade, é literária. Logo, tem as dificuldades da tradução literária. Além disso, é filosofia, e, portanto, demanda o cuidado da tradução filosófica- que é a uniformidade ao traduzir termos-, por último, tem a dificuldade da idade: o inglês ganhara dicionário havia muito pouco tempo e nem era a língua materna de Hume,(era o scot, o dialeto escocês das Terras Baixas, parecido com o inglês, e que não é o dialeto das Terras Altas, o gaélico, que é dos habitantes anteriores à conquista romana e não tem nada a ver com inglês.), então há palavras que Hume usa lá no séc. XVIII com significado que não consta em dicionário nenhum. Como descobrir esses significados? Bom, há aqueles momentos em que nenhum sentido do dicionário se encaixa. Um é quando o fideísta diz que todo homem sente a própria imbecillity, e então procura o “Todo Poderoso”. Imbecilidade, que é o sentido de hoje, não serve, por que o devoto diria que todos somos imbecis? Como Hume cita muito os latinos e imbecillity tem raiz latina, fui ao dicionário de latim, e pronto: imbecillitas é fraqueza. Os homens procuram Deus por causa da própria fraqueza, e Deus tem a característica oposta. Aí sim, faz sentido. Fui ao latim mais de uma vez, e pus nota para avisar e justificar essas opções que não são óbvias, porque o leitor tem o direito de saber como foram feitas e decidir se são as melhores. Quanto ao aspecto literário, escolhi usar “tu” e “vós”, sem “você”. Não me pareceria fiel a um clássico setecentista cheio de personagens com nomes gregos usar uma linguagem coloquial e contemporânea. Enquanto pesquisadora da área de filosofia, como você avalia a produção temática de livros traduzidos para a área? Hoje temos um crescimento no mercado de tradução muito legal: saiu de cena aquele intelectual que lia tudo no original e não se preocupava por não existir público para livros traduzidos em um país de maioria analfabeto. A coisa começou nos anos 70 com a coleção Pensadores, quando a Editora Abril recrutou tradutores da Universidade de São Paulo para traduzir, anotar e comentar volumes sobre filósofos, e vendê-los em banca de jornal. Mas essas obras tinham dois defeitos: as traduções eram de qualidade irregular (se não tinha ninguém da Usp para falar de Cícero, reeditava-se a tradução do preso político dos anos 30 que sabia só o latim do ginásio), e nem sempre eram integrais, sem que houvesse aviso disso. Reparem que livro de bolso em francês ou inglês não tem aquele aviso de que é integral, porque é óbvio que eles são. No Brasil, temos público leitor há pouco tempo, e por isso temos traduções e edições decentes há pouco tempo. Na Bahia muito menos, tem baiano publicando em São Paulo, mas Salvador existe desde 1549; é mais velha do que o hábito de filosofar em vernáculo, e parece que chegou a meados de 2016 sem editar uma única tradução integral de clássico da filosofia. Há muito avanço, mas também muito trabalho pela frente. Quanto ao grande número atual de belas traduções editadas em São Paulo, tenho uma crítica. Caminha-se em sentido inverso da Pensadores: ao invés de se recrutarem especialistas e dar-lhes liberdade, há um esforço para fazer as edições mais enxutas, ainda que feitas por especialistas que teriam condições de fazer belos trabalhos de edição e comentário. Para que isso? Se fossem de bolso, eu entenderia: priorizar a redução de custos com a nobre finalidade de tornar o livro mais acessível. Em países de público leitor consolidado, o normal é existirem as brochuras baratíssimas sem comentário, as baratas com comentário e nota – publicadas por editoras universitárias, diga-se – e as edições mais caras feitas para especialista. No Brasil, hoje, o normal é edições serem caras e minimalistas ao mesmo tempo! Na obra que você traduziu, David Hume faz um debate a partir dos personagens sobre a existência de Deus, porém, ainda nos dias atuais este assunto é um tabu na esfera pública. Por quê? De fato, vi uma pesquisa de apenas dez anos atrás onde se dizia que era mais fácil eleger-se um gay para presidência do Brasil do que um ateu. Acredito que é porque poucas pessoas têm ocasião de se declarar ateias, e não é possível flagrar o ateísmo de alguém. Se um homem for pego dando um beijo em outro, ou se apresentar o namorado, estará claro que é gay, mas se você descobrir que um homem não vai missa, nem ao culto, nem ao terreiro, ainda poderá achar que ele acredita em “algo” ou que é católico não-praticante. Resultado é que ninguém identifica ateus, nem tem ocasião de olhar para pessoas banais e descobrir que é falsa aquela ideia demoníaca de ateu. Deixe uma mensagem para os leitores da Edufba. Leiam Hume, é bem legal. Além das livrarias da Edufba, tem no Glauber, na Boto Cor-de-Rosa e dá para encomendar com frete bom pela Travessa.