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Caê Garcia Carvalho

 

 

Edufba: É um prazer tê-lo em nossa seção Diálogos. Fale um pouco sobre a sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.

 

Caê Garcia Carvalho: O prazer é meu. Minha jornada acadêmica começa em 2009, tendo escolhido a Geografia por identificação na época colegial. Desde cedo esboçava a ideia de trabalhar com religião na Geografia, temática que não recebeu tanta atenção por parte de nós geógrafos. Proximidade com pessoas que vivem a fé me impeliram para esse debate. No entanto, o professor Angelo Serpa me convidou para tocar um projeto de iniciação científica acerca do samba de roda como elemento articulador da identidade regional no Recôncavo. Minha monografia, então, acabou seguindo o delineamento construído no PIBIC. A ideia de se trabalhar com a religião foi posta para o mestrado. 

Havia ainda muito o que se explorar na pesquisa sobre o samba de roda e a identidade regional, mas preferi migrar para outro tema, não seguir um trajeto retilíneo, monotemático, entre graduação, mestrado e doutorado. 

Cumprida a pesquisa no mestrado (pesquisa que embasa o livro “A Dimensão Espacial da Experiência Religiosa”), uma vez mais rotacionei o eixo temático. No doutorado, procurei debater a experiência de mundo dentre aqueles que sofrem com dores crônicas e o apelo dos lugares para estes agentes numa possível recuperação de si. Nota-se que os meus temas de pesquisa costumam escapar do lugar-comum…

Nesse ínterim, atuei na UFBA como substituto e, hoje, também como substituto, trabalho no IFBA. Em paralelo, sou Professor Formador na UNIPAMPA. Sempre migrante, mais uma vez escrevo sobre a religião, retornando à temática do mestrado em paralelo às publicações sobre Geografia, Psicanálise e saúde, construídas no doutorado.   

 

Edufba: O seu livro “A dimensão espacial da experiência religiosa: práticas e representações entre candomblecistas e evangélicos” expõe como a religião estabelece a espacialidade na vida cotidiana de seus adeptos. Explique brevemente o tema para que seus leitores e leitoras tenham uma ideia do conteúdo da sua obra.

 

CGC: Na Geografia, é consolidada uma perspectiva de se trabalhar a religião pensando, por exemplo, na difusão dos credos, nas romarias, na organização espacial articulada aos templos etc.  Eu não quis seguir essa linha, estava mais preocupado em compreender como as distintas cosmogonias religiosas engendravam geograficidades específicas. Quero dizer, como a vivência sob os auspícios dos valores da religião por parte dos praticantes implicava em maneiras particulares de viver o bairro, a cidade, em suma, o mundo. É daqui que emerge a espacialidade da religião na vida cotidiana dos seus adeptos, respondendo objetivamente à pergunta. 

Pudemos constatar, então, como são fundamentalmente discrepantes as geografias vividas imbuídas pelo espírito de cada religião. Suas cosmovisões são absolutamente contrárias: uma evoca o coletivo, a outra a individualidade; uma é fundamentalmente terrena, marca uma relação de cumplicidade de ser com a Terra, a outra espera a vida celestial; numa, é a ancestralidade a mola mestra do credo, noutra, o par pecado-salvação, Deus-Diabo. 

Creio que o mérito do livro está, por fim, em articular essa espacialidade cotidiana ao elemento basilar da religião, suas concepções de sagrado. São, pois, as concepções do sagrado - d’onde se gesta as cosmovisões discutidas - o cerne que enlaça a religião e a Geografia, uma geografia revelada e construída no cotidiano, na relação ser-mundo. 

 

Edufba: A sua obra aborda o Candomblé e a Igreja Evangélica, duas religiões em que percebemos haver ainda uma visão muito preconceituosa sobre suas crenças. O quanto essa realidade influenciou no seu trabalho e como ela se manifestou através dele?

 

CGC:: Inicialmente, no projeto do mestrado, eu não tinha proposto trabalhar com o Candomblé. A comparação seria entre a Universal e a Igreja Católica. 

Durante o processo de seleção foi-me imposto o questionamento: “como você tá na Bahia e não vai estudar o Candomblé?”. Pergunta mais que justa, não é? 

Justifiquei afirmando que trabalhos sobre o Candomblé, justamente por conta de sua relevância histórica e social à Bahia, já eram alvo de estudos, enquanto essa comparação inicial por mim problematizada teria algo de inédito e era o cristianismo que, ao longo da preparação da pesquisa, desse projeto, eu estava estudando. 

Já no primeiro semestre do mestrado fiz esta alteração, algo que já havia decidido desde a “bronca” na seleção. E, olhando retrospectivamente, obliterei do campo de visão o Candomblé para não criar fricções no campo das relações pessoais. Só assim posso justificar nem ter pensado no Candomblé. Então, sim, o preconceito esteve presente.  

De certa forma, em relação à Universal, isso também se concretizou. Do meu olhar (supostamente) racional, desprezava a fé alheia. Mas, felizmente, em que pese certos dogmas e visões aos quais sou avesso, passei a respeitar a fé dos evangélicos. Isso, no entanto, não nos exime de ter um olhar crítico à realidade estudada, que, por vezes, é cruel.

 

Edufba: A sua obra toma como base para estudo de caso a Igreja Universal do Reino de Deus e o Terreiro do Cobre, que se situam no Engenho Velho da Federação. Quais os motivos que o levaram a escolher esse bairro e esses espaços religiosos?

 

CGC:: Bom, o motivo com relação à fé protestante se deu por conta de seu espantoso crescimento nas últimas décadas. A escolha do bairro, por refletir essa realidade de crescimento das denominações pentecostais e neopentecostais; e, ainda quanto ao Engenho Velho, por ter sido um bairro conformado a partir dos terreiros. 

A escolha específica da Universal se cumpriu por ser a Igreja símbolo do movimento neopentecostal, por apresentar influência nacional e internacional, número de fiéis elevadíssimo, sua projeção midiática pela Record etc. 

Já o Candomblé, por ser uma religião, digamos, mais reservada, presumi que seria mais fácil estabelecer um diálogo caso alguém pudesse me apresentar para algum membro de algum terreiro e que, a partir desse contato, explicando a pesquisa, eu pudesse entrevistar seus adeptos. Ou seja, foi um acaso. Minha mãe conhecia uma pessoa, essa pessoa conhecia uma das candomblecistas e assim foi. 

O acaso tem seus quês de precisão, não poderia ter sido mais certeiro:  Igreja e Terreiro, a Universal e o Cobre, estão, literalmente, dispostos frente a frente no Engenho Velho. Destaco, inclusive, que muitos dos conflitos inter-religiosos presentes no bairro - assunto também analisado e discutido no livro - tiveram como protagonistas, justamente, os adeptos das instituições mencionadas. 

 

Edufba: Durante a sua pesquisa e o processo de entrevistas realizados para construção do livro, alguma situação lhe deixou mais sensibilizado ou lhe surpreendeu de alguma forma? 

 

CGC:: Imaginei que seria difícil os membros da Igreja quererem participar da entrevista por conta do preconceito que, muitas vezes, atingem esses religiosos. Imaginei que fossem um grupo bastante fechado, mas não tive qualquer recusa: a vontade de emitir o testemunho da fé abria o cristão à entrevista. Curioso também que - isso é raro - nenhum deles confundia meu nome. Fui abraçado pelos evangélicos. 

No mais, o próprio emergir das distintas geograficidades foram surpreendentes, uma vez que a pesquisa tinha um ponto de partida - inquirir-se acerca da dimensão espacial da experiência religiosa - mas não fazia ideia de onde chegaríamos, se é que chegaríamos em algum lugar. Poderia, após dois anos, concluir que as religiões não possuíam lastro à geograficidade. Foi um passo no desconhecido, no escuro. Dito seja, pesquisas sobre os significados religiosos ganharam algum destaque na Geografia a partir de Gil Filho, no entanto, a investigação da relação geograficidade/credo não é algo posto.  

Quanto à sensibilidade, diversas situações provocaram - e acho que irão provocar no leitor - muitas emoções. Às vezes lindas, como a mudança de vida através da fé neopentecostal ou dos relatos de candomblecistas que não querem mudar-se do bairro porque, para eles, não importa a melhoria de si se seu povo não cresce junto. Outras, no entanto, são um soco no estômago, como os conflitos ou o propagar da Teologia da Prosperidade quando se afirma, num bairro pobre, que serão todos ricos. Basta ter fé, ter fé e doar à Igreja. 

 

Edufba: Finalizando a nossa entrevista, que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?

 

CGC::  Deixo o convite à leitura. Convido o leitor para uma imersão no mundo vivido, no cotidiano, de candomblecistas e evangélicos. Veremos o amor, a indiferença e o rancor surgirem nas relações com o bairro, bem como as representações dos grupos, a partir de mapas mentais, que desvelam os sentimentos e as experiências do lugar; veremos como uma relação de ser, dá abertura ao mundo, se cumpre ou se fecha à depender da cosmogonia analisada; veremos os conflitos, as dores e a beleza da fé. 

Acredito contribuir com este livro para a compreensão de uma importante dimensão da vida humana - a religião - e, à Geografia, seguimos um percurso que pode ser trilhado por outros pesquisadores. Podemos perguntar: outras religiões, ou mesmo as aqui debatidas, mas presentificadas em outros contextos socioespaciais, estabelecem outras formas de ser no mundo? Fundam-se outras geografias vividas? Como? Quais fundamentos sagrados e/ou socioculturais explicam tais geograficidades?  

A Geografia da Religião tem este campo aberto e convido os geógrafos e demais cientistas sociais a explorarem essas veredas. 

 

A dimensão espacial da experiência religiosa: práticas e representações entre candomblecistas e evangélicos

 

O livro é resultado de um esforço para aprofundar as investigações geográficas na área da religião e, mais especificamente, da religião enquanto fenômeno vivido, desvelando suas espacialidades. O autor se debruça sobre duas religiões, o candomblé e o cristianismo à luz da matriz neopentecostal, no bairro do Engenho Velho da Federação, na cidade de Salvador (BA). Mas, como o(a) leitor(a) poderá acompanhar, as reflexões empreendidas escapam do particularismo da Igreja e Terreiro elegidos para análise. A base filosófica do trabalho assenta-se na compreensão da religião enquanto forma simbólica, detentora de um modus operandi que particulariza um conhecimento e uma explicação da realidade humana.

 

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