Carlos Ziller
Enviado em: 03 jan 2022
Edufba: É um prazer tê-lo conosco no Diálogos. Conte um pouco sobre o seu percurso acadêmico e profissional e sua atual área de atuação.
Carlos Ziller: Esse prazer também é meu.
De fato, eu tenho uma trajetória incomum: sou físico de formação universitária, mestre em Educação e doutor em Filosofia. Isso não é exatamente um padrão desejável, mas nunca foi um problema para mim; ao contrário, sempre busquei entender um conjunto significativo de questões perseguindo as soluções nos terrenos em que elas me pareciam estar. Eu acabei me acomodando entre os que estudam História da Ciência já há algumas poucas décadas. No entanto, sempre partilhei a ideia de que esse campo de investigação era parte efetiva e necessária da área de História. Nunca houve, não há e nem pode haver uma ciência realizada nas nuvens, por querubins, ou inteiramente afastada das sociedades e dos seus realizadores. O conhecimento é patrimônio dos humanos, das sociedades, e serve ou desserve a elas.
Eu sou um modernista, um pesquisador que busca estudar e conhecer a Época Moderna em toda a sua dinâmica intelectual, social e política. De fato, interesso-me por essa época por buscar os fundamentos próximos do tempo de agora, daquela época em que os valores, princípios e até mesmo as línguas se organizavam nos moldes que acabaram por sobreviver até nós. Por motivos óbvios, as sociedades ibéricas, especialmente a portuguesa e a brasileira, com seu riquíssimo patrimônio intelectual e científico estão no centro do meu trabalho.
Dado o entendimento que tenho sobre a vida intelectual dos povos, eu não poderia ficar alheio às ações dos homens de ciência do passado naquilo que para eles era coisa muito importante: os destinos das sociedades em que viviam. Dessa forma, já há algum tempo, venho me dedicando à História política de Portugal no século XVII.
Edufba: Para as(os) leitoras(es) que desconhecem a obra “Uranófilo, o peregrino celeste”, conte um pouco do contexto em que ela nasceu e sua importância para a ciência da época.
CZ: “Uranófilo” é uma obra de astronomia que segue um modelo literário bastante comum na época em que foi escrita: o diálogo. Trata-se basicamente de uma discussão entre três personagens, o Uranófilo, que personifica o autor, e duas musas, Urânia e Geonisbe, que tratam dos principais temas da astronomia do período imediatamente anterior à publicação da obra maior de Isaac Newton. O livro usa um recurso literário bastante impactante naquele tempo: as viagens interplanetárias. Em determinados momentos da narrativa, Uranófilo entra em êxtase e se dirige à Lua, depois ao Sol, aos planetas e às estrelas. São diversos êxtases entremeados de passagens sobre a vida ordinária e extraordinária da cidade de Salvador.
O autor desse diálogo é o padre Valentin Stansel, um jesuíta astrônomo que viveu em Salvador na segunda metade do século XVII, no tempo de Antônio Vieira.
“Uranófilo” é um livro que busca seguir um padrão literário, já desenvolvido por outros autores da época, em que as principais teorias astronômicas eram expostas e discutidas em uma forma dialogada e simplificada destinada a um público mais amplo que os matemáticos. No entanto, seu grande valor está na exposição daquilo que era efetivamente o debate astronômico do tempo.
O livro foi razoavelmente divulgado no Velho Mundo e encontramos referências a ele em textos da Bahia, de Portugal e de outros domínios da Europa. De imediato, logo após a publicação, apareceram duas resenhas da obra em importantes periódicos eruditos. Mas o “Uranófilo” não foi um grande sucesso literário numa época bastante agitada.
Edufba: Quando você leu “Uranófilo” pela primeira vez? O que há de especial na obra que lhe inspirou a dedicar seu tempo a traduzi-la?
CZ: Eu devo confessar que fiquei espantado quando vi a obra pela primeira vez. Na época eu estava iniciando meu doutoramento e já tinha visto uma referência ao livro feita por Abraão de Morais em um volume coletivo publicado há algumas décadas. Mas a primeira passada de olhos pelo volume me deixou realmente espantado. Afinal, trata-se de uma obra de filosofia, de astronomia, que foi escrita em Salvador por alguém que viveu na cidade! Nessa época, eu andava estudando as obras de ficção celeste escritas por matemáticos, e não são tão poucas assim. Chamava-me a atenção o elevado número de autores que imaginavam viagens aos céus e que usavam esse recurso para discutir variados temas de importância. Ver um livro desses escrito na então capital do Brasil foi algo que me abriu muito o horizonte sobre o que seria a vida cultural e científica na América Portuguesa para além das antigas considerações depreciativas.
Algum tempo depois, com um conhecimento mais aprofundado sobre os feitos científicos do autor e o impacto de seus trabalhos, achei que seria uma injustiça privar os leitores brasileiros e portugueses da leitura dessa obra. Assim, há uns cinco anos, apresentei a proposta de sua tradução em um edital público de residência e pesquisa da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, fui contemplado e pude realizar o trabalho nas melhores condições possíveis.
Edufba: Por que a obra de Valentin Stansel, escrita na época em que o jesuíta morou em Salvador, demorou mais de 300 anos para se tornar acessível na capital baiana?
CZ: Essa é uma pergunta bastante importante que coloquei logo nos primeiros contatos com o livro. Por quais motivos os estudiosos do passado da ciência no Brasil demonstraram um grande desprezo a uma obra tão interessante?
Eu creio que o fato de o autor ser um padre jesuíta, ser alguém que teve sérios conflitos com Antônio Vieira e que atuava basicamente na cidade de Salvador, sem se importar muito com os grandes problemas da América Portuguesa (as políticas indigenistas, a escravidão etc.), foi coisa que contou bastante. Stansel não sabia a língua das missões, não se dedicava à conversão dos “gentios”. Seu empenho era outro: ele ensinava teologia moral no colégio da Companhia. Certamente lhe importava muito mais o ensino do latim e do grego que do Tupi. Ele era um matemático. Para ele, suas observações celestes, seus cálculos astronômicos tinham prioridade sobre as missões. Stansel trabalhava sobre temas relevantes para a população portuguesa da Bahia.
A condição jesuíta do padre certamente foi fator forte para o “esquecimento” do autor e de sua obra. Já faz algumas poucas décadas, a Companhia de Jesus vem conhecendo inúmeros estudos que buscam identificar com alguma precisão seu papel na vida intelectual e científica. Já se foi o tempo em que se dizia que os padres de Santo Inácio foram sistematicamente a força retrógrada da humanidade. De certa forma, essa tradução ajuda a compreender um pouco melhor os trabalhos científicos da Companhia.
Por fim, o diálogo foi escrito e publicado em latim, e essa língua era a língua franca dos sábios daquele tempo, mas não cumpre de forma alguma esse papel já há 200 anos. Ao contrário, o latim virou língua de pedantes. Sempre poderíamos argumentar que esse problema não é o maior obstáculo, afinal a obra do Guilherme Piso foi escrita em latim e sempre foi bastante valorizada e chegou a ser traduzida em meados do século passado. Porém, a História Natural do Brasil é uma obra bastante técnica com descrições minuciosas e ilustrações sobre a natureza brasileira. Essa realmente é uma característica a não se desprezar. O “Uranófilo” é um diálogo barroco...
O problema principal, no entanto, me parece ser a desvalorização com que os estudiosos do Brasil vêem nosso passado colonial, sobretudo nos temas da cultura e da educação. Durante muito tempo, ao passo em que se desqualificava a cultura dos nativos e dos escravizados, também se ignorava a cultura erudita dos centros de estudos locais. Só despertavam interesse aquelas obras feitas por gente que esteve aqui de passagem...
Edufba: Qual o maior desafio que você enfrentou no processo de tradução?
CZ: A tradução de um texto latino antigo sempre coloca problemas de difícil solução. O “Uranófilo” é um diálogo bastante abarrocado, tratando de temas de filosofia e astronomia de tempos passados, e o que é mais complexo: o texto apóia-se em uma reflexão filosófica já abandonada pelos homens de ciência há mais de 200 anos! Esse foi o problema principal: entender a metafísica que dava sustentação àquela astronomia que Stansel expunha. Feito isso, o trabalho ficou possível, mas outras dificuldades permaneciam nas formas de expressão do diálogo; ele usa e abusa de metáforas extremadas, usa e abusa de neologismos, de anacolutos etc. Mesmo na estrita forma literária, o “Uranófilo” não é um texto fácil.
Edufba: A seu ver, o que se ganha e perde no processo de passagem de um idioma para o outro? O que do texto original você tentou preservar ao máximo?
CZ: Qualquer tradução é uma falsificação: “traduttore traditore”, diz o mal humorado. Afinal, o texto não foi escrito para um leitor do século XXI. O que é mais importante é começar o trabalho bem consciente dessa ideia e buscar aquelas opções no português contemporâneo que melhor expressam aquilo que o autor disse com suas palavras há mais de 300 anos. Um trabalhão!
O que se apresentou com maior dificuldade foi a garantia do humor em algumas passagens, sem tornar o texto incompreensível, o que não foi exatamente fácil. No entanto, esse esforço se justifica plenamente diante da importância de tornar inteligível um texto tão importante para a História da Ciência e para a cultura brasileira. Não é comum, por exemplo, um escritor do século XVII se referir a Salvador como “empório celebérrimo”, tão pouco é comum essa denominação entre os historiadores de tempos posteriores. No entanto, autorizar essa expressão agrega um sabor especial ao livro.
Edufba: Que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?
CZ: Desfrutem do “Uranófilo” sempre pensando que se trata de uma obra de tempos muito antigos e que, por mais que muitas passagens soem estranhas aos olhos, aquela era uma época muito diferente da atual e o saber que se acumulou nesses 300 anos, e que é patrimônio nosso, não estava disponível para ninguém.
Uranófilo, o peregrino celeste: ou os êxtases da mente urânica peregrinando pelo mundo celeste
Autor(a):
A obra, em primeira tradução, é um testemunho da debilidade da ideia de que não se fez ciência no ambiente colonial brasileiro. Trata-se de um diálogo astronômico e filosófico em que são tratadas as principais teorias dos céus e dos planetas em vigor às vésperas da edição da obra de síntese de Isaac Newton. O texto foi escrito em Salvador por um religioso matemático da Companhia de Jesus e publicado em Gand, na Bélgica, em 1685.