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Clebemilton Nascimento

Neste mês, o Espaço do Autor EDUFBA apresenta uma entrevista com Clebemilton Nascimento, autor do livro Pagodes baianos: entrelaçando sons, corpos e letras, fruto de uma pesquisa sobre a interface entre a produtividade simbólica da linguagem e as relações de gênero. Durante a entrevista, Nascimento, professor da UNEB e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM-UFBA), falou sobre sua trajetória acadêmica, suas pesquisas, a concepção do livro Pagodes baianos e a chamada Lei Antibaixaria, dentre outros assuntos.

Por Lorena Reis 01/08/2012

1 – Conte um pouco sobre sua trajetória acadêmica. Quais foram os caminhos percorridos até se tornar professor e pesquisador do NEIM? Minha formação é interdisciplinar, fui cruzando fronteiras em busca de respostas para as questões as quais eu estava me propondo estudar e pelas próprias circunstâncias e dinâmica do mundo contemporâneo. Sou licenciado em Letras com Inglês pela UFBA, mas não consegui ficar preso àquele espaço e debates, comecei a achar todo aquele universo acadêmico extremamente fechado e girando em torno de um eixo monotemático e disciplinar, com suas caixinhas, as quais eu não me encaixava. Eu queria estudar gênero e, na época, final da década de 1990, essas discussões ainda não tinham entrado nos cursos de Letras, como hoje ainda não tem um espaço que deveria ter, se pensarmos na emergência dessa temática na contemporaneidade. O NEIM (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher) era, e ainda é, um espaço autorizado e legítimo para fazer esse debate (agora bem mais estruturado), foi conquistando prestígio e fazendo história, quebrando barreiras ideológicas, históricas e hegemonias, inclusive porque se consolidou no âmbito da pesquisa, presente na extensão e conta com uma Pós-graduação própria, pioneira no Brasil, exclusivamente dedicada aos estudos sobre a mulher, gênero (que é um termo mais recente) e feminismos, passando pela especialização até o doutorado, além da graduação em Gênero e Diversidades, uma conquista recente e pioneira no Brasil (2009). Dessa forma, ele foi alargando o seu raio de atuação e, junto com essa expansão, fui me envolvendo, participando de simpósios, dando oficinas, ocupando espaços. E foi lá que tive acolhida e complementei a minha formação, me especializei em Metodologia e prática de ensino em gênero em um momento que poucos homens se interessavam por esses temas, poucos se atreviam a dizer que era feminista, mesmo porque, para feministas mais radicais, isso não era possível, o que é um grande equívoco, mas esse é outro debate. O NEIM é um espaço acadêmico privilegiado e autorizado para estudar essas questões. Hoje, nós temos outros grupos que abordam essas questões, como o Diadorim na UNEB e o grupo de pesquisa sobre Cultura e Sexualidade (CUS), vinculado ao IHAC, coordenado pelo professor Leandro Colling e que agrega um grupo de jovens pesquisadores que produzem excelentes pesquisas e, apesar do pouco tempo, acumula uma expressiva produção.          Foi, portanto, no NEIM que eu transitei por todos esses anos, como estudante, em cursos de extensão, pesquisando, e como professor, ministrando disciplinas na área de cultura, linguagem e gênero no curso de Gênero e diversidades. Foi lá que encontrei a professora Ivia Alves, pesquisadora entusiasta das questões de gênero e linguagem com quem pude contar e fazer parcerias. Atualmente, sou professor da UNEB, atuando no curso de Letras. Essa minha formação vem fazendo um diferencial nesse caminho de volta para Letras. Tenho orgulho de poder ter feito esse percurso que modificou e vem modificando cada vez mais toda a minha visão de mundo e práticas pedagógicas. Hoje, me sinto muito mais completo e preparado para dialogar com as varias áreas do conhecimento, para enfrentar os desafios da docência, principalmente as questões das diferenças, além das preocupações que regem as teorias e políticas feministas, e mais recentemente, despertando meu interesse pela teoria queer, pelo estudo das masculinidades, motivado pelo diálogo com outros estudiosos e estudiosas de outros espaços e militantes de movimentos sociais. Todos esses questionamentos, de uma forma ou de outra, tem me levado a fazer uma apropriação crítica dessas discussões. Atualmente coordeno o projeto Lendo criticamente imagens da contemporaneidade – transversalizando classe, gênero, raça/etnia, sexualidades e geração nas aulas de Língua Portuguesa, junto a CAPES/UNEB, através do PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência). 2 – Você direciona suas pesquisas para temas relacionados a gênero, comunicação e linguagem. De onde surgiu o interesse por estes assuntos? Minhas pesquisas obviamente passaram a ter gênero como principal categoria analítica articulando minhas análises com outros marcadores sociais da diferença, na perspectiva da nova política de gênero, nos questionamentos das demandas colocadas pelos sujeitos e as normas que os criam. A propósito, o gênero está em todas as coisas, nós que não fomos treinados para enxergar para além do senso comum. Mas nem tudo é uma questão de gênero, é preciso que fique claro. Não dá para achar que gênero responde a todas as questões que explodem com a contemporaneidade, a exemplo da análise dos pagodes, mas deixá-lo de fora é no mínimo empobrecedor, invisibiliza e escamoteia as diferenças porque a sociedade é racista, classista e sexista. Não acho que o conceito de gênero, antes sinônimo de mulher, tenha despolitizado os movimentos sociais, o conceito de gênero é extremamente útil para refletir e pensar a pluralização dos sujeitos sociais, a construção dos sujeitos considerados normais e na própria naturalização da heterossexualidade. Mas essa não é uma questão unívoca, assim como são vários os feminismos, são múltiplas as concepções de gênero. Estou falando de um posicionamento sobre o tema que não está pronto e acabado. A linguagem, a mídia na contemporaneidade, é sem dúvida um campo profícuo para entender as relações de gênero, que são relações de poder. Nesse ponto, é importante identificar o discurso dominante em várias frentes e como o discurso dicotômico, binário e hierarquizador tem sido cooptado por discursos supostamente contemporâneos. A linguagem é um espaço de luta hegemônica onde o poder se expressa. Todo discurso é ideológico e é através da linguagem que as ideologias operam. As relações de dominação e as formas simbólicas estão sempre inseridas em contextos e processos socialmente estruturados, legitimando, naturalizando e retificando hegemonias, mas também transformando, operando mudanças. É assim que eu penso o papel e o lugar da linguagem na cultura contemporânea. 3 – Em Pagodes baianos, sua obra mais recente, você analisa como o pagode baiano insere-se na cultura contemporânea. É possível afirmar que o conceito de pagode baiano vai além de um estilo musical? O cenário do pagode na Bahia é hibrido. Não me sinto à vontade com a ideia de um movimento único, prefiro pensar como um campo heterogêneo com questões que extrapolam o campo da música, mas não estou interessado em descobrir um marco inaugural, uma origem. Prefiro falar em “pagodes baianos” com uma gama de matrizes, influências, vertentes, identidades e tensões.  Pagodes baianos: entrelaçando sons, corpos e letras é uma obra pioneira, que preenche uma lacuna histórica, tanto no campo da pesquisa como no mercado editorial, pois não havia nada publicado sobre esse fenômeno cultural tão presente na cultura baiana, nenhum estudo mais vertical sobre a temática havia sido feito. Nesse sentido, a EDUFBA, representada por Flavia Rosa com seu olhar atento e perspicaz, antenado às novas demandas de publicação, bem como o conselho editorial da editora, perceberam a emergência desse produto cultural, bem como a necessidade de colocar no mercado a obra em um momento de polêmicas em torno do tema como a lei ”antibaixaria”. A obra é fruto de uma pesquisa intensa e extensa realizada para a minha dissertação de mestrado. Sua metodologia tem inspiração interdisciplinar (análise do discurso, música, dança, teatro, história). Foi a partir desse estudo que fiz importantes e decisivas parcerias com pesquisadoras da área de música que operam com gênero como Laila Rosa, dentre outras. O próprio objeto que é multidimensional sugere esse movimento teórico-metodológico e toma a sexualidade como fator determinante na mudança social na contemporaneidade. Procura identificar como a mulher, seus corpos e sexualidades passam a ser temáticas presentes e recorrentes nas letras que se espetacularizam na interação entre artistas, músicas e platéia. Em Pagodes baianos faço uma reconstituição da trajetória dos grupos de pagode que emergiram na década de 1990 na esteira do estrondoso sucesso do grupo É o tchan para compor o corpus de estudo, mostrando como essa música ganha o gosto das classes médias, traçando assim um percurso dessa temática a partir da tensão que se estabelece entre a normalização e a subversão. Dessa forma, a leitura desse livro interessa tanto ao pesquisador, acadêmico quanto ao leitor comum, a linguagem é simples e sem excessos de citações que poderiam afastar esse leitor pouco afeito aos estudos de gênero e sexualidades, mas que se interessa pelo tema, tudo isso sem perder o rigor metodológico. Vale ressaltar que até o momento os principais interessados são os estudantes, jovens pesquisadores que vivenciam essa cultura e se interessam pelo assunto. Acredito que “Pagodes baianos” realiza uma desconstrução de leituras rasteiras, preconceituosas, pautadas pelo senso comum, por um discurso moderno, quase sempre reforçado pela mídia sobre os atuais pagodes da Bahia e os sujeitos envolvidos, não a única, mas uma possível. O samba na Bahia foi ganhando contornos e significados singulares, tanto na hibridação dos sujeitos na circularidade das culturas burguesa e afrobaiana. A primeira parte discute esses processos, mapeando os espaços onde se originam, como se formam as bandas que resultaram dessa interlocução entre os batuques de origem africana com a mídia no século XX, ao produzirem um produto hibridizado e multidimensional que se volta para o entretenimento, agregando varias linguagens na intersecção entre sons, corpos e letras. Não se trata de um trabalho de denúncia, pelo contrário, não faz julgamentos, busca uma via de compreensão, de entendimento desse produto cultural, ao leitor cabe tirar suas conclusões. Parto das condições de produção, dos diálogos e trânsitos com outros segmentos da música urbana contemporânea. O livro retrata uma trama simbólica construída pelos compositores, protagonizada por “piriguetes” e “putões”, representações de gênero do pagode. Atrevo-me a dizer que a parte mais interessante dessa obra seja a construção da piriguete que escapa do contexto dos pagodes para fazer parte das práticas sociais atravessadas por classe e instrução e se ressignificam na mídia através das telenovelas, revistas e redes sociais. 4 – No livro, você afirma que a imagem feminina no pagode baiano é construída a partir do olhar masculino. Quais fatores históricos permitiram que isso acontecesse? O pagode produzido na Bahia é monovocal, ou seja, suas letras são compostas e interpretadas por homens, não há mulheres compondo ou interpretando letras, como em outros gêneros musicais mais próximos do pagode como o funk e hip hop que são, muitas vezes, discursos que produzem determinadas fissuras que permitem a mulher representar a si mesma, dizer de si, afirmar sua cultura, seus desejos. No pagode elas são representadas e ai interessa observar esse imaginário sobre a mulher. Isso não quer dizer que essas mulheres muitas vezes não estão reproduzindo uma ideologia machista, reforçando as assimetrias. Há essa vertente dedicada à mulher, sua sexualidade e as relações de poder. Mas é importante salientar que essa vertente é apenas uma parte das composições dos grupos de pagode, nem é algo novo que surge com o pagode. Uma análise das letras da década de 1950, de Caymmi e tantos outros descrevem essa “mulher perigosa”, hoje as piriguetes, tentadora, provocadora de desejos através do rebolado, no andar. Essas representações contribuíram para a conformação do imaginário brasileiro daquele período, na literatura e outras artes. No entanto, nesse estudo, as letras de pagode se colocam como lócus cultural, um campo fértil para tentar compreender as relações sociais na cultura baiana atual, e na impossibilidade de apreender essa realidade, busca-se fazer uma leitura das representações. 5 – Em sua opinião, como as letras das músicas de pagode baiano podem interferir nas práticas sociais? Quais os malefícios que isso traz para a sociedade? Todo o campo simbólico da cultura constrói representações, influencia, forma, conforma e transforma comportamentos, atitudes. As letras de pagode são uma interface da mídia e atuam na construção do nosso self. Há quem pense que a letra não é importante nos pagodes baianos, que não deve ser levada com seriedade porque se trata de um produto para o entretenimento, ao lazer, mas não existe pagode sem letra, daí sua importância. É necessário um olhar mais criterioso no sentido de examinar o conteúdo de tais letras incluídas nesta ou naquela temática.  As letras têm um valor simbólico e aciona efeitos de sentidos, constroem discursos, ideologias e estruturam no seu bojo relações de poder. Nesse sentido, a linguagem pode subverter ou enredar corpos em relações de poder que produzem diferenças e hierarquias. Na verdade, os discursos são mais eficazes quando as ideologias estão internalizadas e naturalizadas, ou seja, não nos damos conta. Nesse sentido, precisamos aprender a ler criticamente os produtos culturais que nos são disponibilizados. Voltando ao pagode, talvez as mulheres não devam se preocupar com as letras pois elas são expressões de homens rejeitados e ressentidos já que as mulheres perigosas, as piriguetes, não se submetem ao modelo da Amélia, os homens não perceberam ou não querem aceitar essa mudança de atitude das mulheres, principalmente quando são rejeitados, daí o contra ataque e a desqualificação, mas a desqualificação não é uma reiteração da norma ou elas, as piriguetes estão subvertendo o modelo idealizado da mulher de verdade? 6 – Como você avalia a Lei Antibaixaria, que proíbe a contratação, com dinheiro público, de bandas que ofendem mulheres em suas músicas? Concordo que o dinheiro público não é bem aplicado e essa aplicação não é democrática. Da mesma forma não compro nem consumo músicas que me ofendem e desqualificam. É preciso entender, temos aqui duas coisas diferentes. Essa é uma questão polêmica, mas temos o compromisso de enfrentá—lo. É importante garantir junto ao poder público a liberdade de ir e vir, de ter nossos direitos assegurados, precisamos assegurar que nossos corpos não sejam violados e  esse ato fique impune, isso é fato. Isso é primordial, mas é preciso entendermos melhor como funcionam as leis. Creio que a lei batizada de “antibaixaria”, a meu ver uma denominação infeliz, tem levantado um debate para além do consenso, com muitas vozes, e diferentes sujeitos, lugares de fala e interesses, há até quem analisa como pânico moral, censura. Nesse debate, os sentidos nem sempre convergem para uma coerência, tem suas contradições e discordâncias. O que eu percebo, nesse debate, é a presença de um senso comum que se reproduz em diferentes estratégias discursivas do que uma tentativa de fazer um debate mais qualificado e conseqüente sobre as questões postas. Os argumentos contrários a referida lei geralmente acabam por se pautar na retórica da censura, do patrulhamento ideológico, de um senso comum que em nada contribui para a elucidação do tema e sua inserção no âmbito das políticas públicas, na compreensão da dinâmica social das relações de gênero, e principalmente da violência simbólica produzida no âmbito da cultura baiana e todo o hibridismo que envolve os sujeitos e os discursos. Será se não estamos deixando de perguntar quem decide se as representações são “obscenas” ou “pornográficas”?  Será se não estamos deixando de problematizar o “obsceno” e o “pornográfico”? Certamente que os atuais grupos de pagode da Bahia desde a década de 1990 vem exagerando na pitada do duplo sentido e explorado uma estética pornô, mas isso não é de hoje. É lógico que a lei em si não resolverá o problema, ela serve para mostrar quem tem o poder e só terá sentido se tiver o poder de convencer as pessoas a obedecer. Por outro lado, sua aplicabilidade é um imbróglio, um ponto a ser aprofundado, pensado com mais clareza sob pena de repetirmos o equívoco do seu apelido, ou seja, “antibaixaria”. Muito provavelmente esse termo tenha sido usado como uma estratégia de popularizar o projeto de lei da mesma forma que a lei Maria da Penha se popularizou. Do ponto de vista histórico, político e ideológico, o termo “baixaria” carrega um sentido negativo, que remete a um julgamento de valor, de “baixa cultura” ou “cultura da baixaria”, um discurso dicotômico, marcado pelo preconceito, pelo estereótipo, além de representar uma ideologia classista e racista. Esse discurso ficou muito evidente na pesquisa de periódicos que fiz para minha dissertação de mestrado da década de 1990. Não estou sendo contra a lei, mas convenhamos, precisamos qualificar o debate. O pagode antes restrito as camadas populares, guetos e redutos negros foi ao longo das últimas décadas caindo no gosto das classes médias, chamando a atenção para os seus discursos. Então não seria pertinente perguntarmos por que só chegou agora? 7 – Deixe uma mensagem para os leitores da EDUFBA. Prestigiem os títulos da EDUFBA, leiam Pagodes baianos e entendam a complexa trama simbólica de relações de gênero e tire suas conclusões.

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