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Fabiana Paixão Viana

"Tal como uma refeição, a vida é efêmera; algumas vezes nos preocupamos em demasiado com a preparação do cardápio, com a escolha dos ingredientes, com o preparo das comidas e não aproveitamos o momento atual, pois já estamos planejando o seguinte; e, sem perceber, só nos restam os pratos sujos, ou a conta para pagar." Fabiana Paixão Viana é autora de Menus dos trabalhadores: estudo do Calabar da Ezequiel Pondé em Salvador, obra resultante de sua pesquisa de mestrado, sobre os hábitos alimentares da comunidade recém pacificada do Calabar, na capital baiana. No Espaço do Autor deste mês, ela conversou sobre os desafios que enfrentou durante a produção da sua tese.

Fabiana é licenciada em Ciências Sociais (2007) e bacharelada em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia (2009) pela Universidade Federal da Bahia. Além disso, possui mestrado em Estudos Étnicos e Africanos (2012) e doutorado pelo programa de pós-graduação em Antropologia na UFBA (2016).

Por João Bertonie

Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional e acadêmica. Como surgiu o seu interesse pelas ciências sociais, mais especificamente pela antropologia e pelos estudos étnicos e africanos?

Desde o Ensino Médio eu já sabia que optaria por algum curso das Ciências Humanas, no entanto, ainda não havia me decidido sobre qual escolher. Meu primeiro vestibular teve Jornalismo como primeira opção e Ciências Sociais como segunda escolha. Perdi nesta seleção e no ano seguinte, vivendo o mesmo dilema sobre o que eleger, percebi que eu realmente queria fazer Ciências Sociais, devido as múltiplas possibilidades do curso, seja em relação as disciplinas, seja na diversidade de campos teóricos, temas de pesquisas e áreas de atuação, tanto na graduação, quanto no mercado profissional. Em 2007, tornei-me licenciada em Ciências Sociais, mas a sede de conhecimento me fez seguir adiante no bacharelado em Antropologia. Confesso que fiquei dividida entre o bacharelado em Antropologia ou em Sociologia, mas a optei pela primeira e sou muito feliz com esta escolha! Em 2009 defendi minha monografia sobre as redes de sociabilidade em um asilo feminino em Salvador, sob a orientação do Professor Jeferson Bacelar, que também me orientou no mestrado, cuja a pesquisa resultou no livro Menus dos Trabalhadores Urbanos: estudo do Calabar da Ezequiel Pondé em Salvador. O mestrado em Estudos Étnicos e Africanos foi muito importante para minha trajetória acadêmica, pois complementou e ampliou a formação antropológica que eu venho acumulando desde a graduação. Em 2012 passei na seleção no doutorado em Antropologia, também na UFBA, e em abril deste ano defendi minha tese, também na sub-área da Antropologia da Alimentação, mas desta vez estudando a alimentação dos imigrantes galegos e seus descendentes em Salvador.

 

O que te levou a estudar a relação entre a comida (alimentação/ gastronomia) e as questões de classe, religião e gênero? Como você chegou neste cruzamento de ideias? Por que a escolha do Calabar da Ezequiel Pondé? Qual a sua relação com essa rua?

Fui me apaixonando pela Antropologia da Alimentação aos poucos, meu primeiro contato com o tema relacionado a comida se deu através do livro Fisiologia do Gosto, de Brillat-Savarin; a primeira vez que o li estava no processo de finalização da monografia e busca de um tema para o mestrado, encontrava-me muito fragilizada devido a alguns percalços da pesquisa do bacharelado e encontrei na Antropologia da Alimentação um novo fôlego para recomeçar uma pesquisa acadêmica. Inicialmente imaginei estudar distintas famílias do Calabar, no entanto, em 2010, este bairro ainda era palco de disputas de traficantes rivais e, por esta razão, seria impossível escolher aleatoriamente grupos domésticos sem eleger uma determinada região pertencente a apenas uma das facções, isto sem considerar questões de minha segurança pessoal na vivência cotidiana da pesquisa e a confiança dos pesquisados em me cederem as informações que eu necessitava no momento. Cheguei ao Calabar da Ezequiel Pondé por acaso e percebi que ele era o lócus perfeito para a realização de meu estudo. Antes eu não a conhecia e esta denominação se deu devido a sua localização limítrofe entre a rua Desembargador Ezequiel Pondé, pertencente ao Jardim Apipema, e ao Calabar, compartilhando características de ambos. As questões de classe, religião e gênero foram surgindo aos poucos, a medida em que conversava e observava a rotina de seus moradores, pois como diz um jargão da universidade: o campo tem vida própria.

 

No livro, você diz que, dentre os lares pesquisados, “90% dos ensinamentos culinários se deram pelas mães”. Qual o papel das mulheres nos grupos domésticos analisados?

A mulher é a principal responsável pela compra e preparo dos alimentos no Calabar da Ezequiel Pondé, entretanto suas preferências e repulsas alimentares não são prioritárias, preponderando os gostos dos maridos, dos filhos ou outros parentes residentes no grupo doméstico, principalmente quando há a presença de doentes ou anciãos. Apesar de a transmissão culinária ocorrer, em grande parte, das mães para as filhas, a mídia e as relações profissionais, nos casos das empregadas domésticas, também são importantes neste cenário, porém, as novas gerações não se sentem à vontade para receber os ensinamentos passados por suas mães, uma vez que o ato de cozinhar, no âmbito doméstico, é carregado de obrigações e falta de reconhecimento dos demais familiares, exceto nos casos em que a comida sai com algum defeito - nestas situações o julgamento é cruel e moroso. Algumas mães, inclusive, associam o ato de cozinhar a demonstração de afeto por seus filhos, mais uma vez, sem o reconhecimento dos mesmos, que consideram uma atividade natural, devido ao papel familiar ocupado. Assim, a mulher ocupa, ao mesmo tempo, um papel de destaque e invisibilidade dentro do grupo doméstico.

 

Como se deu o relacionamento com as dezoito famílias entrevistadas?

Meu relacionamento com as dezoito famílias entrevistadas, assim como o restante dos moradores desta rua, foi bastante amigável. Estabelecemos uma relação de amizade e respeito desde o início da pesquisa. Acredito que alguns fatores foram importantes para que assim o fosse, como as aulas de apoio escolar – ou banca, como chamamos por aqui – para as crianças de diferentes idades e grupos domésticos, a disponibilidade de ouvir e auxiliar os adolescentes e jovens, que comumente também acompanhavam estas “aulas”, levando inclusive trabalhos e tarefas de suas escolas, e a disponibilidade das mulheres que me receberem nos mais diferentes dias da semana e horários para me auxiliarem neste estudo. Toda a pesquisa é uma surpresa, nunca sabemos ao certo o que vamos encontrar em campo, mas eu acredito que a sinceridade em relação aos objetivos do estudo e o respeito pelo outro garantem uma estadia harmônica e proveitosa para todos.

 

Quais os aspectos etnográficos mais interessantes você apreendeu em sua pesquisa?

Grande parte dos moradores do Calabar da Ezequiel Pondé ou nasceram lá ou se mudaram há muito tempo, acompanhando inclusive todas as mudanças positivas e negativas na rua, desta forma, apesar de todas as dificuldades estruturais do local todos me falavam com muito carinho de sua rua, da tranqüilidade do lugar e do convívio com os vizinhos. O cuidado coletivo com as crianças quando estavam no âmbito público, a troca de alimentos cozidos entre os mais próximos e o auxílio nos momentos de necessidade, como no evento da mulher que cortou o pé em um caco de vidro, me chamaram muito a atenção. Obviamente estas são características comuns em locais pequenos, mas encontrá-las em Salvador, em uma região limítrofe entre um bairro popular e bairros habitados pelas classes médias, em que predominam guaritas e muros intransponíveis, foram muito marcantes tanto para a pesquisa, quanto para mim, enquanto pesquisadora. Outro aspecto interessante e inesperado foi o fato de que esta pesquisa auxiliou na busca pelo reconhecimento da categoria “Calabar da Ezequiel Pondé” por parte de seus moradores, principalmente para demarcar a situação particular desta rua em relação ao Calabar e ao Jardim Apipema.

 

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Nossa sociedade está vivenciando um momento muito delicado em múltiplos aspectos, mas apesar de tudo devemos continuar acreditando em uma saída e em um futuro melhor, sem nos esquecermos dos mínimos motivos para celebrar a vida e viver o hoje, tal como os moradores do Calabar da Ezequiel Pondé, que não obstante as dificuldades econômicas e sociais comumente se reuniam com os amigos e familiares para um petisco em suas casas simples ou no bar local para celebrarem, comemorarem e serem felizes.

Tal como uma refeição, a vida é efêmera; algumas vezes nos preocupamos em demasiado com a preparação do cardápio, com a escolha dos ingredientes, com o preparo das comidas e não aproveitamos o momento atual, pois já estamos planejando o seguinte; e, sem perceber, só nos restam os pratos sujos, ou a conta para pagar. Desejo que entre os planejamentos, que são necessários, sempre haja um espaço para saborear o momento atual.

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