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Fernanda Mota Pereira

Edufba: Conte um pouco sobre sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.

Fernanda Mota Pereira: Essa pergunta ampla aciona uma reflexão de Starobinski em sua leitura sobre Rousseau e a dificuldade do autor em escrever sobre si de modo a aprender o que seria fundamental. É difícil fazer um recorte, mas, ao mesmo tempo, é fácil compor a tríade vida-academia-profissão ao falar sobre minha trajetória. Desde criança, sempre fui dedicada a estudar e já ensaiava o ofício de professora nas brincadeiras infantis que eu levava muito a sério. Estudar me encantava e era o principal elemento que encantava as pessoas ao meu redor. Muito cedo, aprendi que estudar descortinava caminhos para acessar mundos que talvez não conhecesse senão através da leitura. Nesse passaporte que é o ato de aprender, vi que meus estudos também eram uma fonte de desenvolvimento da empatia que me levava a me tornar uma melhor filha, amiga, colega, parceira…

Fui estudante da educação básica da rede privada inicialmente e, por obstáculos socioeconômicos da vida, estudei em escola pública no ensino fundamental 2 e ensino médio. Diante de inúmeras situações de estímulo e também de desestímulo na vida que consegui superar, desejei aprender inglês e meus primeiros percursos nessa língua abriram mais um caminho: o do ensino. Aos 16 anos e sem ter como arcar com meu curso, passei a dar aulas de reforço no cursinho onde estudava e, com isso, tive condições de continuar a estudar e dar meus primeiros passos no ensino. Um ano depois, ingressei como graduanda no Curso de Letras da UFBA e passei a conhecer, de forma mais aprofundada, as estratégias e recursos que usava em sala de aula. Tive inúmeras experiências como professora. Atuei no ensino fundamental 1, ensino fundamental 2, ensino médio, dei aulas em cursos livres, em curso pré-vestibular, fui professora da rede municipal e estadual e atuei em faculdades particulares na modalidade à distância e presencial. Essa pluralidade de experiências foi ainda conjugada a escolhas no campo acadêmico não menos plurais.

Atuei em um projeto de Linguística como bolsista voluntária, fui bolsista PIBIC de um projeto na área de Recepção Crítica no campo da Literatura Brasileira e atuei em um programa de extensão de língua estrangeira durante a graduação. Ao pensar na pós-graduação, seduzida por uma trajetória de estudos no campo da Literatura de Língua Inglesa em várias disciplinas ministradas pelo professor Luciano Lima e no campo paradisíaco da Teoria da Literatura em disciplinas ministradas pela professora Mirella Márcia Vieira durante a graduação, decidi seguir o campo da Literatura no Mestrado e Doutorado. Concluí o mestrado em cerca de um ano e meio e o doutorado em cerca de dois anos e meio. Ao longo desse período, trabalhava em diferentes instituições e apenas no ano final do doutorado passei a trabalhar na UFBA como professora de Dedicação Exclusiva. Como estudante de mestrado e doutorado na área de Literatura, sempre tive em perspectiva o ensino, pois trabalhei como professora de inglês, literatura anglófona e linguística durante o tempo em que fui estudante de pós-graduação. Dessa articulação, nasceu o desejo de desenvolver um projeto, uma poética de trabalho, uma forma de vida que conjugasse o ensino de língua à literatura. Era a semente do sonho que inseminou o livro Education and Literature.

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Edufba: De que forma a sua experiência na sala de aula foi decisiva na elaboração do livro “Educação e Literatura: reflexões sobre questões sociais, raciais e de gênero”?

FP: Como professora da educação básica, sempre tive a preocupação de ensinar língua inglesa e, ao mesmo tempo, abordar conteúdos que ampliassem o pensamento crítico e instigasse a consciência social sobre temáticas relevantes e significativas. O mesmo é extensivo às minhas práticas no ensino superior, em que também busco transubstanciar em recursos e estratégias a salutar articulação entre os insumos de vertentes como os estudos culturais, atualmente, também decoloniais, para pensar a inserção de temáticas que sensibilizem as e os estudantes e chamem a atenção para mecanismos de poder que subalternizam pessoas e tornam o mundo tão desigual. O livro nasceu, então, de uma resposta ao projeto de trazer para sala de aula ideias e propostas de ensino em uma mirada mais atenta à necessidade de abalar, deslocar, desconstruir o sistema opressor que se soergue na tríade patriarcado, capitalismo e racismo. Nesse solo em que se sustenta esse projeto, germinou a iniciativa de abordar questões sociais, raciais e de gênero que respondem a esses três pilares dos mecanismos de poder responsáveis pelas mais profundas mazelas do nosso mundo e reuni-las num livro que traz, em suas palavras, projetos e percepções de mundo.

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Edufba: Como surgiu a ideia de unir diferentes linhas de estudos com o intuito de dialogar sobre educação e literatura?

FP: Em “Educação e(m) ensino de língua estrangeira” (MOTA, 2010), trago alguns argumentos que abalam a dicotomia que marca a relação literatura e linguística aplicada. Um deles reside no fato de a literatura e a educação pertencerem ao campo da linguagem, o que sinaliza para seus entrelaces. Além disso, vejo que muito se fala sobre a necessidade de contemplar a competência intercultural e humanizar mais a sala de aula de línguas, mas nem sempre são apontados caminhos e recursos. Decidi, então, escrever um livro que respondesse a essa demanda e servisse não só como meio de instigar o desejo de articular esses campos do saber, mas, também, trouxesse propostas de como colocar em prática os insumos teóricos que sedimentam tal articulação. Foi por esse motivo que planejei um livro que apresenta diferentes textos literários de países onde o inglês é uma das principais línguas ou língua oficial, traz temáticas de relevância para pensar o contexto desses países e do Brasil e apresenta estratégias e/ou procedimentos de ensino, ou seja, como implementar essas temáticas em sala de aula por meio de atividades descritas nele.

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Edufba: O livro é composto por uma densa discussão guiada por estudos acadêmicos. Você acredita que, por conta disso, a obra só é capaz de alcançar um nicho específico (academicista, linguista, educacional etc)?

FP: O livro tem um sólido alicerce teórico, mas ele foi escrito em uma linguagem leve e não academicista com o intuito de falar não só para professoras/professores, acadêmicas e acadêmicos, mas também para estudantes da educação básica e do ensino superior. Algumas das discussões que estão nele resultam de experiências de oficinas para estudantes da educação básica e ensino superior. O fato de ser bilíngue também traduz o projeto de torná-lo acessível e convidativo para qualquer pessoa que deseje saber como aprender e ensinar inglês tendo a literatura como recurso que, por extensão, inspira um olhar mais atento a leituras de textos, incluindo um chamado vida.

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Edufba: O uso de obras contemporâneas é um fator importante para aproximar ainda mais o leitor da discussão. A escolha delas foi feita a partir de algum critério específico, vivência ou gosto?

FP: O critério de escolha dos textos literários que analisei no livro foi alinhado com o recorte do livro. Nele, abordo os sentidos da educação que, como a pesquisa que fiz ao escrevê-lo mostrou, têm conotações diferentes na literatura de autoria negra e branca. Em textos de escritoras e escritores negras e negros, a educação tem um sentido coletivo e se reveste de um significado emancipador não apenas para a personagem ou o personagem, mas para a comunidade à qual pertence. Nos textos de escritores brancos, por sua vez, a educação demonstra ter um propósito mais individualista. Outro critério foi a diversidade geopolítica. Quis contemplar, pelo menos, um país de cada continente. Assim, escolhi um texto literário da Nigéria, Quênia, África do Sul, Irlanda, Inglaterra, Estados Unidos, Índia e Ilhas Salomão, buscando ter um número maior de países pertencentes ao Sul Global e o continente de maior relevo foi, intencionalmente, o africano.

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Edufba: Qual a importância sociocultural de uma obra como essa?

FP: O livro descortina questões sociais, raciais e de gênero e, ao fazê-lo, engendra reflexões que direcionam a atenção para elas, que estão na mira de mecanismos que deflagram cenas de preconceito em nosso país e em outros ainda fortemente marcados pelos efeitos da colonialidade. Ao lançar uma luz sobre a relação entre educação e propósito de vida e sociedade, o livro também ressignifica a importância dela, acentuando o seu papel no processo de desenvolvimento do pensamento crítico e da empatia. Além disso, o livro é uma apologia à leitura e uma tentativa de propagação da noção de que ler é um dos atos mais revolucionários que está ao nosso alcance para tornar o nosso mundo mais humanizado e sensível bem como afeito às diferenças que pintam o colorido de uma pluralidade sempre salutar e agregadora.

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Edufba: Deixe uma mensagem para os seus leitores e leitoras.

FP: Esse livro é o caminho que encontrei para dar as mãos a colegas de profissão, professoras e professores e pessoas que, assim como eu, acreditam que aprender uma língua como o inglês é uma forma de acessar diversos mundos. Esses mundos descortinam diferenças, mas, também, convergências que nos levam a aprender mais sobre o outro e, num jogo especular, também sobre nós mesmas(os). Espero que você, leitora ou leitor, seja tocada ou tocado pelo convite de ler mais, de não deixar que os objetivos práticos da vida tragam um distanciamento de práticas que aguçam a sensibilidade e trazem ensinamentos sobre poéticas diversas de vida, como a leitura de um texto literário proporciona. Espero também que encontre nele o desejo de manter os sentidos atentos e uma atitude crítica de enfrentamento diante das estruturas de poder que se erguem em escalas de preconceito balizadas por questões sociais, raciais e de gênero. E que essas questões sempre nos deixem inquietas e inquietos enquanto o direito à paz e à dignidade não for de todas e todos.

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