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Fernando Peres

Professor emérito da Universidade Federal da Bahia e Membro da Cadeira nº 25 da Academia de Letras da Bahia, Fernando Peres fundou, juntamente com Glauber Rocha, Calasans Neto e Paulo Gil Soares, as Jogralescas (poesia teatralizada), a revista Mapa, as Edições Macunaíma e a Iemanjá Filmes. Sua obra Memória da Sé, publicada pela Editora Corrupio, foi elogiada por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e Pedro Nava.

Peres recebeu o prêmio Joaquim Nabuco, conferido pela Academia Brasileira de Letras, no ano 1983, para o livro Gregório de Mattos e Guerra, uma revisão biográfica, prefaciada pelo filólogo e pesquisador Antônio Houaiss. A obra é referência na biografia de Mattos. Irreverente, nesta entrevista o autor conta momentos em que viveu ao lado de Glauber Rocha, seu amigo e parceiro de trabalho, e sobre o tempo em que esteve em Lisboa pesquisando a vida de Gregório de Mattos, e claro, da sua arte: a poesia.

 

  1- O senhor é bacharel em Direito e mestre em Ciências Sociais (História) pela Universidade Federal da Bahia. Entre 1976 e 1979 foi diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para a Bahia e Sergipe. De 1979 a 1983 foi Pró-Reitor de Extensão da UFBA, em 1987 foi eleito membro da Academia de Letras da Bahia e tem mais de dez obras publicadas. Comente um pouco sobre sua trajetória. Sou bacharel como muitos brasileiros o foram e são. É uma carreira que dá status evidentemente... Eu não exerci a profissão de bacharel, advogado... Exerci a profissão de professor. Professor da Universidade Federal da Bahia, para a qual prestei concurso em 1974. Entrei na Universidade em 1966 como professor horista, depois passei a ser professor contratado e em 74 fiz concurso para professor assistente. Cheguei a adjunto IV, e hoje sou, para honra minha, professor emérito dessa Universidade. Fui diretor do IPHAN, pró-reitor de extensão, fui diretor da Fundação Cultural do Estado da Bahia, fui diretor do Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia. Tudo isso nunca me afastou da sala de aula. Tentei e consegui conciliar as duas atividades: de administrador da cultura e de professor da universidade.  2-  Aos 16 anos, o senhor encontrou na biblioteca de seu tio-avô fotos, recortes de jornal e correspondências sobre a demolição da Igreja da Sé. Guardou a documentação e, duas décadas depois, o material foi utilizado para a construção da sua tese acadêmica intitulada Memória da Sé, e, posteriormente foi publicada pela Editora Corrupio. O que lhe motivou a reunir e guardar esse material para publicar uma obra de tal importância? Eu era um adolescente curioso que colecionava autógrafos e também recortes de jornais. As notícias mais significativas que eram publicadas nos jornais, eu recortava.  E este achado pra mim foi muito importante. Guardei a documentação até que surgiu a oportunidade. Peguei o material, fiz uma pesquisa, ampliei o escopo e fiz esse livro, que demonstra como a cidade do Salvador, que chamo de Salvadolores, vem sendo paulatinamente destruída pelas autoridades civis e eclesiásticas desde 1933. Vêm derrubando o que podem e o que não podem. O que é possível e o que não é possível... Ainda hoje, apesar de existir o Decreto 27, de lei de proteção do patrimônio artístico nacional.

"Eu era um adolescente curioso que colecionava autógrafos e também recortes de jornais. As notícias mais significativas que eram publicadas nos jornais, eu recortava."

3-  O senhor ganhou o Prêmio Joaquim Nabuco conferido pela Academia Brasileira de Letras, em 1983, pela publicação do livro Gregório de Mattos e Guerra: uma revisão biográfica. Como foi o desenvolvimento da pesquisa, e quais são os aspectos mais complexos para uma análise da obra de Gregório de Mattos?  Essa pesquisa usa a obra de Gregório enquanto um elemento para fixá-lo na circunstância baiana do século XVII. Fui para Portugal, frequentar os arquivos de Lisboa, do Porto, de Évora, de Guimarães... Locais onde Gregório de Mattos, ou sua família, conviveu. Levantei dados inéditos sobre a biografia de Gregório de Mattos, que estava completamente cheia de lacunas. Porque a biografia escrita por Manuel Pereira Rabello, no século XVIII, estava lacunosa. Então, o que fiz foi levantar inúmeros dados como, por exemplo, fixar definitivamente a data de nascimento e morte de Gregório; identificar um casamento dele em Lisboa; uma filha natural que ele teve com uma outra mulher enquanto era casado, e que ele batizou; cargos que ele ocupou na magistratura, como juiz de fora, juiz do cível; e toda a fase dele em Coimbra como estudante, desde a matrícula até a sua formatura. O livro reúne todo esse material e até hoje é uma referência. E por muito tempo isso me deu muito trabalho, mas eu já era da Universidade Federal da Bahia. Fui pra Portugal em 1968, com uma bolsa de estudos do Ministério dos Negócios estrangeiros do governo português. Fiquei lá durante um ano pesquisando e viajando pelo interior de Portugal, em Guimarães, de onde veio a família de Gregório, e em cidades como Alcácer do Sal, aonde ele foi juiz de fora e também foi da Santa Casa de Misericórdia. Ele foi o provedor da Santa Casa de Misericórdia de Alcácer do Sal. Gregório era um homem importante, apesar de ter sido um satírico incrível, que escreveu poemas terríveis contra autoridades civis e eclesiásticas. Não é a toa que ele foi chamado de Boca do Inferno. Gregório escreveu, por exemplo, um poema contra um governador denominado Antonio Luis da Câmara Coutinho, que era homossexual. No poema ele diz assim: “sal, cal e alho, caiu no teu maldito caralho. O fogo de Sodoma e de Gomorra em cinza queime esta porra”, e por ai lá vai... A Sé da Bahia, que tinha um capítulo composto de padres, ele dizia que era um presépio de bestas. Ou seja, os padres, membros capitulares, não passavam de umas bestas. Ele era incrível. 4- É verdade que em Portugal o senhor não podia falar sobre política? É VERDADE. Quando cheguei em Portugal, fui compelido a assinar um documento dizendo que eu não era um comunista. Se eu não assinasse o documento, eu seria deportado para o Brasil. De início não assinei, vim pra casa, conversei com minha esposa e meus amigos portugueses. Eles disseram “ASSINE, isso é comum. Todo mundo que vem aqui assina isso e fica, contanto que você não se envolva com política aqui, nada vai acontecer a você! Assine esse documento mesmo que você seja comunista.” Mas eu não era comunista! Eu apenas tinha muitos amigos no partido comunista, e, eu, de vez em quando, para me distrair, ia fazer algumas tarefas. Sempre fui uma pessoa de esquerda. Fui compelido a assinar esse documento e assinei.

"Eu não era comunista! Eu apenas tinha muitos amigos no partido comunista, e, eu, de vez em quando, para me distrair, ia fazer algumas tarefas."

5- Qual a sua opinião sobre a literatura, e, mais especificamente, sobre a poesia que é feita, no Brasil e na Bahia atualmente? O senhor acompanha o trabalho de algum autor contemporâneo? Olha, a poesia da Bahia vai bem, obrigado. Temos aqui bons poetas dos quais eu destacaria, por exemplo, o Florisvaldo Mattos, a Myriam Fraga... A prosa na Bahia é que está escasseando. Romance. Conto não. O conto vai bem. Nós temos alguns contistas de peso como, por exemplo, Aramis Ribeiro Costa, Carlos Ribeiro... Porém, o romancista baiano, e que já está instalado na literatura brasileira porque tem reconhecimento é Hélio Pólvora. Bem, estes prosistas têm muita qualidade. Evidentemente que outros que, por acaso, eu não tenha citado ou que esteja por aí escrevendo também devem ter qualidade. Não sei aferir a qualidade da nossa literatura. O que sei é que ela está escassa. Claro que antes houve uma personalidade dominante na prosa que foi Jorge Amado. Amado fez uma sombra espetacular sobre os demais que tentaram escrever romances, mas não é o caso. Não vamos aqui entrar nessa seara de sombras porque não faz muito sentido, mas, é preciso assinalar que Jorge foi um importante e prestigiado romancista da Bahia e é uma marca, uma grife baiana, não é? É evidente que para que haja novos poetas, novos romancistas, é preciso que aqueles que o pretendem ser leiam, conheçam a poesia brasileira e baiana. É preciso ler. É preciso aprender com os outros, não a fazer uma poesia igual, plagiada, mas é preciso ler. E sou mais radical. Um poeta que se diz poeta e que até hoje não leu Camões, Jorge de Lima, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Godofredo Filho? E tantos outros poetas brasileiros como Murilo Mendes, Arthur de Sales e por aí vai... Entre baianos e brasileiros do sul, ou do nordeste, ou do sudeste, não importa. Escrever poesia não é escrever uns versinhos e concorrer com aqueles versinhos assados. É preciso ler, estudar. Praticar o ofício de fazer poesia, de fazer romance, de fazer conto, de fazer o que seja na vida. Da mesma maneira que o sapateiro faz o sapato, o poeta faz o poema. Nós temos um exemplo na literatura brasileira do período colonial, de um homem que foi alpercateiro que fazia alpercatas e foi poeta, foi gramático, filólogo, hoje santo. Anchieta. Anchieta como jesuíta fazia alpercata para usar ele e os seus companheiros missionários, junto aos nativos brasileiros do século XVI (1556). Quem quiser que leia a biografia dele ou aguarde a publicação da Arte da Gramática da língua mais usada na Costa do Brasil que a EDUFBA vai publicar.

"É evidente que para que haja novos poetas, novos romancistas, é preciso que aqueles que o pretendem ser leiam, conheçam a poesia brasileira e baiana. É preciso ler."

6- Quais lembranças o senhor traz do período em que conviveu com personalidades como Glauber Rocha, Calasans Neto e Paulo Gil Soares, e como surgiu a ideia de escrever as Jogralescas? São lembranças, memórias de juventude. Evidentemente que nos éramos uns jovens muito atirados, faceiros, irresponsáveis (risos). E estávamos aí no mundo tentando encontrar o nosso lugar... Resolvemos cada qual fazer aquilo que sabia fazer. Eu sabia escrever, declamar, LER – o que hoje muita gente no Brasil não sabe, não lê e não quer saber. Cada qual se interessava por alguma coisa. Eu me interessava por literatura, Glauber por cinema, teatro, literatura também. Paulo Gil se interessava por cinema, teatro e literatura também, Calasans por pintura... e muitos outros como Carlos Anísio Melhor, Florisvaldo Mattos... Uma “tchurma” de jovens. Então uns ingressaram na Faculdade de Direito... Glauber também ingressou na Faculdade de Direito, mas abandonou no 2º ano. Eu fui pra Faculdade de Direito no Recife porque foi uma escola muito importante, e minha família paterna é de Pernambuco. Mas, depois me transferi pra Bahia. Em Recife, trabalhava na Sudene, por isso que eu consegui a transferência. Formei-me em 1964 e me casei no mesmo ano com Urânia Maria Tourinho Peres*. Esse ano farei 50 anos de formado e 50 anos de casado, formei no dia 8 de dezembro e me casei no dia 11 do mesmo mês. *Primeira psicanalista a ocupar vaga na Academia de Letras da Bahia.

 

"A poesia tem que ser criadora, inovadora, pra frente."

7-Como nasce um poema? Veja bem, é sempre ter como ponto de partida uma ideia... A partir de uma observação ou a partir de uma lembrança, observar e memorizar que serve como suspiração. Eu não sou a favor da inspiração, eu suspiro, não inspiro, nem aspiro, eu suspiro. Tem poetas que são aspiradores de pó, eu sou suspirador de pó (risos). Depois, evidentemente que eu tenho a ideia. O ponto de partida de todo poema é a ideia. Uma ideia amorosa, uma ideia amatória. Seja lá o que for. Mas para isso, eu preciso ter um universo de vocabulário. Eu preciso conhecer as palavras. Eu preciso ter o meu dicionário interior. Cada pessoa tem o seu dicionário, seu estoque de palavras. Uns tem muitas, outros tem poucas. Existem políticos no Brasil que tem muito poucas palavras, e ainda falam errado. Existem políticos que dizem “menas”. Mas não é somente a escola que dá ao sujeito o estoque vocabular. É a convivência com outras pessoas que tenham também estoque vocabular que possa passar. Todo escritor tem que ter vários dicionários, não apenas um dicionário, mas vários! Tem que ter o dicionário etimológico, sinonímicos, antroponímico, toponímicos, e por aí vai... tem que ter dicionário. Se está querendo escrever, seja prosa ou poesia, tem que ter dicionários. Hoje não precisa nem ter, vai à internet, pelo amor de deus, e encontra as coisas para não ficar dizendo besteira em poemas. Besteira pra mim é lugar comum, entendeu? Não é pensar que a poesia é lugar comum, não é. A poesia tem que ser criadora, inovadora, pra frente. 8- Quais seus novos projetos? Pretende publicar outra obra? Bem, eu estou escrevendo um novo livro de poesia. Estou “matutando” a publicação de um catálogo cronológico de autoridades eclesiásticas. Acabei de escrever um artigo para uma apresentação de um livro, e leio muito! Mas meu projeto fundamental é viver bem os anos restantes de vida. Eu estou com 77 anos, e a qualquer momento eu posso morrer. Então, eu estou procurando tentar viver bem. Lendo, vendo filmes, fugindo da copa do mundo e coisinhas dessa natureza... (risos) só estarei presente, aviso, não vou fugir no dia das eleições para votar corretamente. Esse é o novo projeto. Projetos a gente só põe na mesa quando tem que desenhá-los. Projetos ficam na cabeça. 9- Deixe uma mensagem para os leitores da Edufba. Feliz Natal e Próspero Ano Novo! Independentemente de quem seja eleito na próxima eleição porque nos vamos ter eleição em 2014, e o presidente eleito vai governar a partir de 2015. E por isso que já estou desejando um Feliz Natal este ano para começarmos a enfrentar a inflação e as dificuldades que estão vindo por aí no ano de 2015.

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