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Gil Vicente Tavares

"Se os temas ao longo da peça subvertem morais, éticas, ordens, não são porque a peça é subversiva, mas porque o homem, infelizmente, até hoje, ainda não soube se defrontar com seus monstros, suas fragilidades, sua sexualidade e suas relações promíscuas, covardes, arrogantes e canalhas com o poder." Nome respeitado na cena baiana, Gil Vicente Tavares falou sobre sua relação com o Teatro do Absurdo, sobre seu duplo papel de dramaturgo e professor na Escola de Teatro da UFBA e refletiu sobre sua própria obra na edição de maio do Espaço do Autor. Gil Vicente Tavares é graduado pela Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (1999), onde obteve o título de mestre (2006) e de doutor (2011) em Artes Cênicas. É hoje um dos nomes mais importantes da dramaturgia baiana, tendo escrito "Sade" (peça vencedora do Prêmio FAPEX de Teatro 2010 e do Prêmio Braskem de melhor texto em 2016), espetáculo criado para sua dissertação de mestrado, e "A herança do absurdo", livro que resultou de sua tese de doutorado e que foi publicado pela Edufba no início do ano.

Por João Bertonie

 

Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional e acadêmica. De onde surgiu o seu interesse pelo teatro, mais especificamente sobre a herança do Teatro do Absurdo?

Ainda muito mais influenciado pelo cinema que pelo teatro, notadamente por cineastas como Bergman, Greenaway, os italianos, escrevi uma primeira peça sob encomenda para um projeto da Escola de Teatro. Perguntaram se eu escrevia para teatro, menti, e escrevi Ato único. Ali, alguns elementos do Absurdo já surgiam, como analiso no livro, e, embalado pela boa receptividade da peça - que foi montada como espetáculo de formatura de uma aluna - senti-me impulsionado a escrever mais. Após o exercício de uma disciplina, onde tive que fazer uma versão reduzida de Fim de partida, de Beckett, senti uma imensa atração pelo Absurdo e escrevi Canto seco e Os javalis influenciado por essa dramaturgia e dramaturgos como Beckett, Ionesco, Pinter, Mrozek, e durante certo tempo o Absurdo esteve presente na minha escrita e nas minhas montagens. Além disso, passei a perceber os vestígios do Absurdo nas novas dramaturgias que surgiam e resolvi, depois de entrar em contato com a obra de autores contemporâneos meus, fazer uma releitura dessa estética e buscar um novo olhar, criando novos conceitos, e às vezes negando estudiosos e conceitos anteriores, para chegar à herança do Absurdo nas dramaturgias mais recentes. Vale ressaltar que as três peças citadas acima, e citadas no livro, encontram-se como apêndice da edição, dando a oportunidade do leitor ter acesso à teoria, mas também a exemplos da dramaturgia absurda através da minha criação.

 

Você exerce a dupla carreira de acadêmico e dramaturgo e diretor. Como sua vida na academia influencia seu trabalho nos bastidores dos espetáculos e vice-versa?

Costumo brincar que a profissão de professor é a mais cínica que existe, pois aprendemos muito mais que ensinamos. A sala de aula, as consequentes palestras, as orientações e, principalmente, os impasses, as crises, as dúvidas dos alunos - e nossas - nos provocam a repensar teorias e práticas do teatro constantemente. Além disso, somos (ou deveríamos ser) provocados a nos atualizar constantemente, buscando novas ideias, dramaturgias, estéticas e, por ser uma profissão que lida diretamente com a prática, é fundamental estarmos atentos à programação cultural da cidade e também viajar para uma reciclagem de ideias.

Aí é que justamente acontece o vice-versa. Por viver o dia a dia da lida com o teatro, e não só ele, pois trabalho com música, dança, cinema, outras linguagens, posso trazer minha pequena experiência de fracassos e sucessos, de formas e processos de criação, e uma natural atualização que sempre nos impulsiona na criação artística. Nossa Escola de Teatro é, provavelmente, uma das que mais conseguem esse trânsito entre teoria e prática, com diversos professores e alunos transitando entre a sala de aula e os palcos Salvador e mundo afora. Como diz aquele ditado: "na prática, a teoria é outra". Portanto, acho que é um ganho pra mim, e, talvez, para os alunos, que eu possa sempre estar nesse trânsito. Fica tudo vivo. Falo de um processo de encenação passando por um. Falo da criação de uma dramaturgia escrevendo uma. Inevitavelmente, levo, para ambas, experiências que me acrescentam muito e me dão uma certa experiência mais sólida na sala de aula e de ensaio.

 

O Teatro do Absurdo agrupou autores como Beckett e Pinter, e hoje influencia nomes como o romeno Matéi Visniec, além do seu próprio trabalho. Se Beckett e Pinter usam o Absurdo como forma de catalisar os sentimentos de devastidão do pós-guerra e Visniec como meio para retratar o caos da Guerra da Bósnia, em que contexto você insere o Absurdo em seus textos?

Minhas duas peças onde o Absurdo é mais evidente -- Canto seco e Os javalis, ambas no livro -- surgiram de um momento de perplexidade e revolta impotente meus. Ao longo do livro, vou elencando características do Absurdo partindo de um conceito de "desloucar", usado por Günther Anders, em seu estudo sobre Kafka.

Acabo, à falta deles, por criar três conceitos, no livro, para perscrutar vestígios absurdos em alguns autores. Dentre esses conceitos, o primeiro sob o qual me debruço é o conceito de atonia. O conceito surgiu da ideia de imaginar os personagens absurdos atônitos em suas ações, fazendo uma relação com a etimologia da palavra.

Foram notícias de jornal que me provocaram a escrever as peças. A seca no Nordeste, em 1998, em pleno final do século XX, o investimento maciço nas forças armadas, a voracidade da dita globalização e disseminação capitalista de produtos, a violência física e psicológica e o pânico contemporâneo, eram notícias e acontecimentos que me soavam absurdos, complexos, difíceis de agir e/ou reagir, e a partir disso fui construindo uma dramaturgia que tivesse como mola mestra a relação absurda entre os personagens, dos personagens com a situação e o próprio absurdo da ação em cena.

Cena de "Sade". Foto: Mila Cordeiro|Ag. A TARDE

 

Resultado do seu mestrado feito em 2006 pela Escola de Teatro da UFBA, o espetáculo "Sade" ganhou em abril o Prêmio Braskem de melhor texto. Todos os personagens são parte das fantasias do polêmico Marquês de Sade (1740 - 1814), que foi preso diversas vezes e conduzido a um manicômio por tratar de temas que incomodavam a sociedade de sua época. Ainda hoje falar sobre estes temas é considerado algo subversivo?

Os personagens existiram, assim como as situações encenadas. Eu apenas pincelei com doses de ficção e metalinguagem a cena, criando elementos dramáticos que me interessavam discutir a partir do personagem.

Acho pretensioso considerar minha peça subversiva. Certa vez, Letizia Russo escreveu algo bem bonito sobre a peça, que dizia que o espetáculo não pretendia escandalizar, mas conseguia "um escândalo mais profundo [...]: o escândalo da alma, mais que o escândalo dos olhos". Busco, ao longo do texto, mostrar o Marquês de Sade em situações as mais diversas, na posição de poderoso, de subjugado, de humilhado e de humilhador. Tentei fazer uma peça que fosse um mosaico onde o personagem não fosse nem herói nem vilão, onde os outros personagens fossem tão sádicos quanto ele, e onde as discussões sobre sexo, religião e política fossem mais importantes que uma mera erotização da cena.

Se os temas ao longo da peça subvertem morais, éticas, ordens, não são porque a peça é subversiva, mas porque o homem, infelizmente, até hoje, ainda não soube se defrontar com seus monstros, suas fragilidades, sua sexualidade e suas relações promíscuas, covardes, arrogantes e canalhas com o poder. Ainda hoje, sexo, religião e poder subvertem a vida das pessoas. A peça é apenas um reflexo disso.

 

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Tentei que meu livro fosse um diálogo com pensadores do teatro, mas também uma porta de acesso aos curiosos, estudiosos de outras áreas e o leitor comum, esse que escolhe ler um livro pela curiosidade, sem conhecimento nenhum do tema, mas pelo interesse que o livro despertou. Minha pretensão era, então, escrever um livro que contribuísse minimamente para a história da estética teatral, mas também um livro que qualquer leitor pudesse desfrutar e se interessar. Se eu puder ter algum retorno nesse sentido, será uma satisfação pra mim. Queria, também, aproveitar o espaço para convidar todos a conhecerem o site do meu grupo de teatro, o Teatro NU - www.teatronu.com - onde temos, além de informações e notícias sobre espetáculos e sobre o grupo, um espaço dedicado à dramaturgia baiana e uma página com artigos sobre cultura e cidade, com professores da UFBA, lá, entre os colunistas, inclusive. Temos também nossa redes sociais; facebook, instagram e twitter, para acompanhar nossas novidades. Para fechar, gostaria de agradecer o convite e esse espaço, e parabenizar a Edufba pelo cuidado, atenção e dedicação para com seus autores e publicações.

 

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