Início / Diálogos / Glória Cecília dos Santos Figueiredo

Glória Cecília dos Santos Figueiredo

O Espaço do Autor do mês de julho conta com uma conversa com Glória Cecília dos Santos Figueiredo, autora de "Produção imobiliária da cidade de Salvador: entre o público e o privado". Em seu livro, Glória aborda a complexidade e multiplicidade de forças assimétricas atuando na cidade, seus movimentos e perfis, o que é possível com a sistematização, análise e a conferência de sentido crítico das construções do meio. Glória Cecília dos Santos possui graduação em Bacharelado em Urbanismo pela Universidade do Estado da Bahia (2006) e é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (2011). Atuou como analista de projetos do Banco do Nordeste do Brasil (2000 a 2001) e está em doutoramento também em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA, com período sanduíche na Université Paris-Est Créteil Val-de-Marne. Foi Diretora-Presidente da Sociedade Brasileira de Urbanismo (2010-2011 e 2012-2013). Atualmente, é membro da Federação Iberoamericana de Urbanismo (FIU) e participa do Grupo de Pesquisa Lugar Comum do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA.  

João Bertonie

1. Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional e acadêmica. De onde surgiu o seu interesse pelo estudo sobre as tendências de uso e ocupação do espaço urbano?

Sobre o meu interesse pelo tema das tendências de uso e ocupação do espaço, é preciso historicizar que em 2008, quando iniciei o mestrado, com a orientação da Profa. Ana Fernandes meu projeto inicial tinha como tema “Estatuto da Cidade e espaço de Sem-Teto em Salvador”. A proposição desta pesquisa partia do entendimento de que a aprovação do Estatuto da Cidade, com todos os seus limites, estabelecia um “terreno fértil” para a emergência de contra-racionalidades. Naquele momento colocávamos em questão as possíveis apropriações e utilizações desta regulação urbanística por Movimentos Sem-Teto. Buscávamos compreender como se dava, ou poderia se dar, alterações no caráter dessa legislação, pela expressão de formas-conteúdos diferenciadas de planejamento e gestão urbanos na cidade de Salvador. Contudo, no percurso do mestrado, após ter cursado suas disciplinas e vivenciado importantes debates acadêmicos, mudei completamente o projeto, propondo um novo tema, já que em dado momento, eu constatei que era já bastante ampla a produção bibliográfica universitária sobre Movimentos Sociais Urbanos. Também me dei conta de como ainda eram escassos trabalhos que tratassem sobre a atuação de agentes hegemônicos nos processos de urbanização contemporâneos. Ao lado disso, no meu cotidiano me chamava cada vez mais atenção as transformações pelas quais passava a Cidade de Salvador. Era claramente perceptível um aquecimento da produção imobiliária de empreendimentos residenciais e mistos, voltados para as chamadas classes médias e segmentos de alta renda. Diante disso, e de modo pactuado com a minha orientadora, eu decidi enfocar, a partir de então, a questão da produção imobiliária de Salvador e de suas tendências de uso e ocupação do espaço. 2. Quais particularidades da cidade de Salvador você encontrou na investigação da produção imobiliária local? Quais os principais problemas que a cidade enfrenta em relação a ocupação do espaço urbano? De modo mais geral, no momento de conclusão da pesquisa do mestrado, o Censo 2010 identificava para Salvador um total de 962.711 domicílios, 99,90% particulares e 0,10% coletivos. Dentre os particulares, destacava-se a expressiva quantidade de 101.297 domicílios não ocupados, número muito superior ao tamanho do déficit habitacional projetado para Salvador no ano 2010, da ordem de 52.570 domicílios. Tais dados sinalizavam para uma dinâmica espacial com forte retenção especulativa de imóveis na cidade. Um dos principais resultados e reflexões apontados pela nossa pesquisa foi a constatação de níveis assimétricos de participação entre os grupos de agentes desta produção imobiliária. Notamos uma atuação avassaladora das empresas imobiliárias, com essas empresas tendo sido responsáveis por mais de 55% do total de área construída licenciada naquele período. Neste quadro, a produção de responsabilidade dos órgãos estatais e das coletividades associadas corresponderam, respectivamente, a menos de 5% do mesmo total. Isso mostrava que as intenções de produção imobiliárias para usos públicos e coletivos, essenciais, tais como equipamentos de educação e saúde, por exemplo, foram pífias. Deste modo, o espaço da cidade de Salvador vem sendo transformado pelas empresas imobiliárias em uma mercadoria muito cara, da qual poucos tem acesso. Em relação às tendências de uso e ocupação do espaço, podemos comentar sobre o uso mais expressivo, observado na produção licenciada para cada grupo de agentes (empresas imobiliárias, outras empresas, pessoas físicas, órgãos estatais, coletividades associadas ou entidades religiosas). O uso residencial foi o mais significativo, em termos de área construída licenciada, tanto para as empresas imobiliárias, como para as pessoas físicas. O uso comercial e de serviços foi o mais importante para as outras empresas e para as coletividades associadas. Nesse último caso dizendo respeito sobretudo à implantação de shoppings centers por condomínios. O uso institucional foi o mais significativo para os órgãos estatais e para as igrejas e entidades de cunho religioso. A distribuição territorial desta produção imobiliária na cidade de Salvador era (e continua) desigual. A sua maior concentração estava na macroárea de Manutenção da Qualidade Urbana (57,19%), relativa a bairros e localidades como Amaralina, Armação, Barra, Boca do Rio, CAB, Caminho das Árvores, Canela, Corsário, Costa Azul, Costa Verde, Graça, Iguatemi, Imbuí, Itaigara, Jaguaribe, Nordeste de Amaralina, Ondina, Paralela, Patamares, Piatã, Pituaçu, Pituba, Plakaford, Rio Vermelho, Santa Cruz, Stiep, Vale das Pedrinhas e Vitória. A maior parte destas áreas se referiam a bairros com melhores condições de infraestrutura urbana de Salvador. A macroárea de Reestruturação Urbana – formada por bairros e localidades como Caixa D'água, Cajazeiras, Capelinha, Cidade Nova, Fazenda Grande, IAPI, Liberdade, Lobato, Marechal Rondon, Massaranduba, Pau Miúdo, Santa Mônica, São Caetano, Uruguai e Vila Rui Barbosa - teve a menor presença desta produção imobiliária licenciada (1,57%). A maior parte destes lugares são bairros populares com grande precariedade de infraestrutura urbana. Ou seja, a região com maiores carências de qualificação do seu ambiente construído foi a que teve menor quantidade de produção imobiliária do período analisado na nossa pesquisa. 3. A cidade de Salvador vem passando por muitas modificações em vários de seus espaços mais tradicionais e conhecidos, como a região da Barra e a zona boêmia do Rio Vermelho. De que modo a produção imobiliária que atua na capital influi nestas mudanças? Veja, bairros como a Barra e o Rio Vermelho vem sendo alvo de intervenções públicas de recuperação ou expansão dos seus espaços públicos, que não tem sido devidamente discutidas, de modo participativo com os seus moradores. Mas, os problemas não se resumem à esta generalizada falta de participação da população na elaboração de planos e projetos urbanos. Sem nem entrar no mérito da qualidade destas intervenções, que tem recebido inúmeras críticas de profissionais e cidadãos, queremos apontar outras questões. Há um concentração de recursos para intervenções em bairros já consolidados, como a Barra e o Rio Vermelho, em detrimento de bairros populares com maiores demandas de redes de infraestrutura e equipamentos públicos. Isto não significa que estes bairros não devem ser alvo de melhorias urbanas, mas, que os recursos precisam ser distribuídos com justiça na cidade. A prioridade para implantação e expansão de redes de infraestrutura deve ser dirigida aos bairros populares, que são aqueles que contam com as maiores demandas e maior concentração de população. 4. Deixe uma mensagem para os leitores da Edufba. A partir da reflexão que fizemos no livro “Produção Imobiliária da Cidade de Salvador” observamos que Salvador faz parte de uma realidade de enormes desigualdades socioespaciais das cidades brasileiras. Estas desigualdades, com as marcas do racismo, da pobreza urbana em massa, da violência, dos processos de segregação, fragmentação, expulsão e Gentrificação, afetam à todos os cidadãos, sobretudo os mais pobres e as coletividades vulneráveis. Nesta dura realidade as cidades tem sido tratadas mais como mercadoria, do que como o espaço coletivo de convívio, fundamental para a vida em sociedade que são. Então precisamos recuperar esta perspectiva do Comum e do direito à cidade! É possível vislumbrar e construir um outro presente e futuro no qual a produção imobiliária seja mais inclusiva, possibilitando o acesso para a moradia e outras atividades sociais a todos os cidadãos, sobretudo os grupos mais vulneráveis. Para isso todos nós precisamos estar atentos aos problemas das cidades no nosso próprio cotidiano e buscar enfrentá-los e superá-los. Eu espero que as reflexões do nosso livro contribuam, em qualquer medida, para este pensar e agir coletivo tão necessário!

Acompanhe as Novidades

Cadastre seu e-mail em nossa newsletter

Siga a Edufba
nas redes sociais

instagram