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Ilza Nogueira

Edufba:  É um prazer tê-la conosco no Diálogos. Conte um pouco sobre o seu percurso acadêmico e profissional e sua atual área de atuação.
 
Ilza Nogueira: Sou cria da Escola de Música da UFBA, ou melhor, dos antigos Seminários de Música e posterior Escola de Música e Artes Cênicas, onde estudei dos onze aos 22 anos de idade, graduando-me como instrumentista (piano) sob a orientação de Pierre Klose (1972), e iniciando-me na composição sob a orientação de Ernst Widmer. Quando saí de Salvador para exercer a profissão em outras paragens brasileiras (1972) e aperfeiçoar-me fora do país e da nossa cultura (1974), a memória dos anos de adolescência e juventude naquela escola ficou afetuosamente guardada. Fertilizada por novos conhecimentos e experiências interculturais, desabrochou numa produção musicológica que, há mais de 30 anos, é dedicada essencialmente à interpretação da história da música na UFBA e das poéticas dos compositores baianos.
 
Em 1997 publiquei pela UFBA o livro “Ernst Widmer: perfil estilístico” e durante os anos seguintes cataloguei e analisei obras do antigo Grupo de Compositors da Bahia e seus descendentes: além de Ernst Widmer, Lindembergue Cardoso, Jamary Oliveira, Fernando Cerqueira, Agnaldo Ribeiro e Paulo Costa Lima. Enquanto isso, a atividade de compositora vem fluindo com referências ao folclore brasileiro nordestino em diálogo com as tradições da música de concerto internacional. Creio que esses diálogos refletem minhas trajetórias acadêmicas entre a Bahia europeizada de Koellreutter, as vanguardas estéticas da Alemanha nos anos 1970 e o cientificismo estruturalista vigente nos Estados Unidos dos anos 1980. Ao mesmo tempo, minha música também reflete a minha aproximação com a musicologias histórica e a analítica. Percursos acadêmicos, portanto, por mais que se distanciem no tempo e no espaço geográfico, e em que pesem posturas e convicções as mais diversas, acabam se intercruzando para resultarem numa via de trânsito expressa de múltiplas pistas, onde ultrapassagens são constantes, colisões são oportunas e o imprevisível, sempre persistente, já não surpreende.
 
 
 
Edufba: Para os(as) leitores(as) interessados(as) no livro, conte-nos brevemente quem foi Jamary Oliveira.
 
IN: Vou destacar de alguns depoimentos do livro trechos que se referem ao homem, ao profissional, ao amigo, ao familiar. Assim, deixo aqui uma descrição da personagem construída por diferentes memórias.
 
“Jamary era o acadêmico das definições cortantes. Talvez devido a seu falar sintético, suas frases tinham efeito duradouro. Você as ouvia e elas lhe acometiam, por assim dizer. Você ficava inflamado por elas e as sofria. Como aquela que, burlando a revolta incrédula dos intérpretes presentes, afirmava categoricamente, em plena aula: uma composição, depois de escrita, não precisa mais sair da gaveta em que for colocada!” (Diana Santiago)
 
“Jamary Oliveira era portador de uma inteligência superior, uma liderança suave e um permanente espírito avançado. Defendeu a renovação da linguagem musical de seu tempo, sendo ele mesmo um compositor de destaque. Obteve reconhecimento em vida, não só pelos profissionais coevos, mas no registro de seu nome em importantes livros de referências brasileiros e internacionais e pela sua eleição para a Academia Brasileira de Música. Na verdade, nem precisaria desta última honraria acadêmica para seu nome se tornar imortal.” (Ricardo Tacuchian)
 
“Jamary era irredutível com a questão da qualidade do trabalho e da postura ética entre colegas e alunos. Discutia com qualquer pessoa de forma sintética e direta, com voz e argumentos fortes, convincentes e muito sinceros. […] Parecia ter uma natureza dura, tensa e forte.  Mas, no fundo, era amoroso, terno e sensível, de um coração generoso e apaixonado. Assisti várias vezes Jamary ouvir música com lágrimas nos olhos... […] Foi meu parceiro de vida e sempre estará no meu coração.” (Alda Oliveira)
 
“‘Duro’ certamente não é o adjetivo certo para se descrever a essência da personagem Jamary em uma só palavra. Creio que o termo mais acertado seja ‘justo’. Sim, era aquela ‘justeza’, em tudo que ele dizia ou fazia, que lhe emprestava uma aparência injusta em primeira mão. Jamary era justo ‘ao pé da letra’: íntegro, imparcial, legítimo, preciso. Por isso foi merecedor do respeito que tínhamos pela sua personalidade astuta e econômica; foi digno da admiração dos que souberam ouvi-lo com a atenção voltada ao que não se fazia explícito, mas implícito; e foi credor da amizade dos que perceberam que a austeridade profissional competia com a generosidade e a solidariedade de quem também se fazia parceiro.” (Ilza Nogueira)
 
 
 
Edufba: A obra “Jamary Oliveira: o homem e a música” é composta de relatos de pessoas que foram tocadas pelo seu trabalho e personalidade, como colegas de profissão, ex-alunos e familiares. Quais foram os critérios para a construção desse “retrato falado”?
 
IN: Escolhemos, eu e Alda Oliveira, pessoas que acompanharam a trajetória de Jamary nas suas distintas fases de vida e em diferentes contextos sociais: de garoto festeiro no interior a doutorando em Boston; de estudante iniciando-se na composição a orientador de pós-graduandos na disciplina. São relatos que vão desde o de quem o viu nascer (seu irmão mais velho) ao de quem ele viu nascer (filhos e netos); de quem ele elegeu para uma parceria de vida (Alda, naturalmente) e de quem o elegeu para parcerias profissionais temporárias. Enfim, essa foi a estratégia que oportunizou construirmos um conjunto de relatos que pudesse retratá-lo em seus diversos ângulos: do sério ao divertido, do intransigente ao indulgente, do exigente ao compreensivo, do lacônico ao falante, do tradicionalista ao inovador, do cientista ao artista.
 
 
Edufba: Dentre todos os relatos e dados que você colheu para organizar a obra, qual lhe deixou mais sensibilizada?
 
IN: É difícil escolher um relato que mais sensibiliza, porque, em diferentes perspectivas, todos se referem ao professor, ao colega, ao esposo, pai, avô e sogro de uma forma muito afetiva e saudosa. Existem relatos bem humorados, que nos fazem rir, outros que podem trazer algumas lágrimas pela emoção transmitida. O conteúdo de depoimentos do livro (há também outros conteúdos informativos) está organizado em três partes que dizem respeito a pessoas que compartilham afinidades: “Jamary e a UFBA” integra nove depoimentos de colegas e ex-alunos da UFBA, dentre os quais os dos professores Manuel Veiga (“O meu outro: Jamary”) e Paulo Costa Lima (“Jamary Oliveira: memórias, reflexões e saudades”) competem no que diz respeito a tocar a ‘sensibilidade’ do leitor. “Jamary entre amigos” contém outros nove depoimentos de colegas de outras instituições no Brasil e no exterior, dentre compositores, instrumentistas e educadores que retratam o amigo com grande admiração, respeito e reverência. Finalmente, “Jamary em família” diz respeito aos familiares: a irmã Arly, a esposa Alda, os filhos Paula e Jamary, o genro Valmor e a nora Luciana, os netos Felipe, Henrique e Sara, a cunhada Guta e a prima Lusa. Nesses encontram-se referências ao homenageado desde sua infância, adolescência e juventude, com casos que nos fazem rir, àquelas memórias carregadas de afeto sobre um esposo apaixonado e parceiro, um irmão presente e atencioso, um pai amoroso e devotado, um avô conversador e alegre, um sogro acolhedor e amigo, um primo dedicado e um cunhado divertido. Então, … é sensibilidade a toda prova!
 
 
Edufba: Enquanto compositor e professor, que ensinamentos de Jamary Oliveira compõem o seu legado para a música baiana e brasileira?
 
IN: Não conheci Jamary Oliveira como professor, mas alguns de seus alunos dão depoimentos muito interessantes sobre sua personalidade docente e sua metodologia de ensino na composição. Destacam, por exemplo, a disponibilidade para o aluno, a exigência perfeccionista, o aprofundamento no conhecimento, a objetividade científica, o raciocínio isento, a integridade moral e ética, e, essencialmente, o estímulo à independência do aluno. Sua dedicação ao aluno fez-se notar especialmente na facilitação do acesso ao material didático, traduzindo tratados importantes de harmonia e contraponto e ainda deixando incompleta a tradução de um livro relativamente recente sobre a notação musical.
 
Como compositor, o professor Manuel Veiga bem define sua produção como uma “ideia fixa com metamorfoses”, onde ressalta a “assimetria na repetição”. Atenta para a “disciplina”, a “transparência” da textura e a característica brevidade (“ares de Webern”), ressaltando que “não há gordura nenhuma nas composições de Jamary, nem indulgências para intérpretes”. “Mesmamusica (1988) derruba bons pianistas; há deslocamentos escabrosos para o executante tradicional”, diz Veiga, e acrescenta que a pianista Cristina Gerling “faz o milagre de tocá-la de cor”. A respeito dessa mesma obra, Paulo Costa Lima lembra o “humor serioso que estrutura o discurso, habitante de um curioso entrelugar que perpassa minimalismo, fractais, boogie-oogie e candomblé... (no mínimo)”. Em poucas palavras, o Prof. José Maurício Brandão arremata a apreciação sobre o compositor: “suas obras que envolvem música eletroacústica, sua música vocal, orquestral, de câmara e muitas obras para piano primam pela concisão, equilíbrio e refinamento de elaboração. Como Jamary mesmo definia, uma obra ‘bem desenhada’”.
 
Deve-se ainda ressaltar a excelência de Jamary como pesquisador, reconhecida pela UFBA quando obteve o Prêmio “Pesquisador do Ano” da Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão (FAPEX) em 1991, logo em seguida sendo nomeado Assessor para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação no reitorado da Drª Eliane Azevedo. A eficiência no cargo conduziu-o a acumular a Assessoria para assuntos de Ciência e Tenologia, em 1993.
 
Nota-se, portanto, que tanto na docência quanto na composição ou na atividade de pesquisa, há sempre um destaque relevante sobre esse homem de natureza introspectiva e intelectualidade múltipla. Eu diria que o legado de Jamary Oliveira (sua música, seus escritos sobre educação e pesquisa) não enriquece apenas a música baiana ou brasileira, mas a música de concerto contemporânea, de uma forma que ultrapassa fronteiras regionais ou nacionais.
 
 
 
Edufba: Recomende uma ou duas composições do músico para aqueles que gostariam de adentrar o rico repertório de obras brasileiras contemporâneas.
 
IN: Jamary não foi o que se pode definir como um compositor prolífico.  No entanto, nenhuma de suas peças pode ser considerada menos criativa, elaborada e pregnante do que as outras. Todas levam a marca do rigor e da sensibilidade de uma criação sui generis. Em sua obra, a marca da brasilidade certamente deve ser mais encontrada nas construções rítmicas; não no sentido das estruturas culturalmente definidas, mas de sua transcendência para tanto concernirem à nossa cultura quanto à ampla contemporaneidade musical. Para os que querem conhecer essa qualidade em sua música, recomendo inicialmente seu repertório para piano, um conjunto de 6 obras que abrangem 3 décadas, escritas entre 1966 e 1996: Oito Peças para piano, Burocracia, Variações variadas, Piano piece, Mesmamúsica e Estudo polirrítmico mixolídio. A pianista Cristina Capparelli Gerling gravou todas elas no CD intitulado “Cristina Capparelli interpreta a Música de Alda e Jamary Oliveira” (UFRGS/ABM Digital/Sonare, 2011). Segundo ela, “o/a pianista tem nas mãos obras fortes, cheias de emoção e profunda integridade artística e musical.”
 
 
Edufba: Que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?
 
IN: “Jamary Oliveira: o homem e a música” é um livro de memórias. Concerne não somente à vida acadêmica e pessoal de um compositor, professor e pesquisador, mas, através de sua história, também abrange a memória e a história da Escola de Música da UFBA.
 
A memória nos permite avaliar quem somos, entendermo-nos como identidade e, assim, acumularmos experiências para idealizar o futuro. É a memória que estabelece uma tradição, e é a tradição que dá consistência à história. Para que haja história, portanto, é preciso que haja memória, essa faculdade que possibilita interpretarmos e atribuirmos sentido ao presente, e, assim, fazermos a história, que não se encontra nos acontecimentos factuais e sim na sua interpretação.
 
Por entender dessa forma a importância da memória é que organizei o livro sobre o Professor Jamary Oliveira. Nos entremeios das lembranças sobre a personalidade do homem e a música do compositor, relembram-se fatos que se relacionam à história da Escola de Música da UFBA. Uma história cujos capítulos ainda se encontram desarticulados em publicações distintas e na memória de muitos que dela fazem parte. Articulá-los em uma publicação específica é um trabalho necessário e auspicioso.

Jamary Oliveira: o homem e a música

Organizador(a): 

O livro é um memorial do compositor brasileiro Jamary Oliveira (1944-2020), professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador do Grupo de Compositores da Bahia, membro da Academia de Ciências da Bahia e da Academia Brasileira de Música. Nesse volume, colegas de profissão, ex-alunas(os) e familiares referem-se à sua obra e à sua personalidade, aos seus escritos críticos e métodos de ensino, aos pensamentos e hábitos que forjaram sua personalidade, compondo uma espécie de retrato falado, cujo principal objetivo é registrar uma trajetória de vida que merece ser apreciada e reverenciada.

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