Isaías de Carvalho Santos Neto
É com imensa satisfação que a Editora da Universidade Federal da Bahia apresenta a entrevista concedida por Isaías de Carvalho Santos Neto para o Espaço do Autor de setembro. O autor da obra Memória Urbana: poética para uma cidade conta a sua trajetória acadêmica, fala sobre o processo de concepção do livro e o atual sistema urbano de Salvador.
Isaías Neto é graduado em Arquitetura pela Universidade Federal da Bahia, onde lecionou por 20 anos, mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).
Por Camila Fiuza
1- Conte-nos um pouco sobre a sua experiência como aluno do curso de Arquitetura. Quando e como surgiu o interesse em se profissionalizar nesta área? Aos sete anos, por conta de um problema de saúde do meu pai, fui morar em Ilhéus, na casa de uma tia e primos. Eu tinha saído do Acupe de Brotas, em Salvador, que era, na época, praticamente um subúrbio. A vida no Acupe era igual à uma roça: eu morava numa chácara e tinha o alimento produzido em casa. A ideia de cidade, pra mim, se resumia em dormir com as galinhas, como se diz na gíria popular, “às seis horas”; não tinha noite, só tinha o dia. E eu saio dali, vou pra Ilhéus e caio em uma rua que era mais ou menos o centro, numa época áurea do cacau. Então, eu fui pra cidade que era, na época, o centro da riqueza da economia baiana. E eu nunca tive percepção de que isso foi fundamental na minha vida, porque eu tomei um susto do que era uma cidade e mais do que isso, não só por ser uma cidade que tivesse uma relação de vizinhança intensa, coisa que eu não tinha quando eu morava no Acupe, lá eu quase não tinha relação com vizinho. Era uma cidade pavimentada, havia sistema de transporte, havia sistema de recolhimento de lixo e tinha noite! Meus primos eram festeiros e de noite a casa estava cheia de gente. Eu ia pra rua ver aquele movimento, ai eu descobri uma coisa chamada noite! (risos), diferente do Acupe onde eu dormia “com as galinhas”. Quando eu tinha 15 anos, tive um professor chamado Ramiro Fonseca, ele era arquiteto e foi meu professor de desenho na escola. Ele tinha um escritório de arquitetura, que eu frequentava, na ladeira do São Bento, no edifício Sulacap. Eu ficava encantado, pois nunca tinha entrado num escritório de arquitetura. Me lembro que na minha infância meu pai tentou fazer uma vez um projeto de derrubar o casarão da roça (do Acupe) e construir uma casa e ele contratou um arquiteto que veio com um projeto absolutamente moderno, futurista e tal... modernista, para usar a expressão correta do ponto de vista arquitetônico. Eu fiquei encantado com aquilo. Agora o que me levou a fazer arquitetura eu lhe confesso não faço ideia. Algumas pessoas me diziam que eu desenhava muito bem, e que devia fazer arquitetura, mas acredito que de todas as influências, essa foi a menor. Acho que foi ao contrário, e ainda digo isso no livro: eu não fiz arquitetura porque desenho, eu desenho porque fiz arquitetura. Foi o fato de ter feito arquitetura que obtive técnica para desenhar. No livro apresento alguns desses desenhos. 2- Fale sobre a sua trajetória durante os 20 anos em que atuou como professor da Universidade Federal da Bahia e sobre os 10 anos em que integrou o quadro docente da Faculdade de Administração da UFBA. Quais fatores influenciaram em sua decisão de lecionar na UFBA? Lembro que formei em 66 e tive acesso à escola em 73, na verdade eu não sabia se ensinar arquitetura era a minha vocação, já tinha trabalhado em muitos lugares, eu era um pouco freelancer. E eu acho que foi muito bom pra mim, pois tenho uma formação muito rica profissionalmente. Acontece que meu filho nasceu, e a partir do momento em que nasce um filho, percebi que já estava na hora de pensar em uma relação mais séria com o trabalho, e um amigo me convidou para fazer o concurso para o corpo docente da Faculdade de Arquitetura. Apresentei meu currículo, fui aprovado. Na época, era uma seleção muito simples. Entrei na condição de Auxiliar de Ensino, e não como professor. Fiquei absolutamente encantado. A universidade tem algo que é diferente. A cada ano que passa, estou mais velho, mas o jovem que está diante de mim está sempre com a mesma idade. Sempre. Ano após ano eu vou ter um jovem de 20/21 anos na minha frente, e que vai me dar uma informação que eu só vou conseguir ali (na sala de aula), e em lugar nenhum do mundo você tem isso de graça. Segundo, se esse jovem, ou essa jovem, for experto, inteligente, interessado em aprender, ele vai me provocar, vai tirar de mim tudo o que eu tenho e mais alguma coisa. Nada é tão maravilhoso do que isso. Onde eu vou conseguir de graça essa possibilidade? E finalmente, como interessa à instituição que eu me aperfeiçoe, ela vai me dar a chance de fazer um curso de pós-graduação, até me oferecendo bolsa de estudo. Além da oportunidade de viajar pra fora do país e conhecer pessoas mais qualificadas do que eu. A academia é fascinante e eu me deixei seduzir completamente. Na Faculdade de Administração fui bem recebido, foi uma experiência fantástica! 3- Em Memória Urbana: poética para uma cidade, o senhor conta a história da cidade de Salvador e as mudanças da capital baiana entre os anos 10 e 70, além de trazer um olhar sentimental sobre a cidade a partir das suas experiências pessoais e profissionais. Quando o senhor decidiu escrever esta obra? Não sei te dizer uma data rígida, pois talvez já tivesse, antes, pensado nisso. Mas há um fato que foi determinante: eu tinha me aposentado, mas tinha sido convidado para trabalhar com o professor argentino Chango Cordiviola, na Faculdade de Arquitetura, na condição de voluntário. Nesse encontro, em 2006, uma menina chamada Regina Azevedo, conhecida como Lala, tinha duas características curiosas. Ela era musicista e tinha mais de 20 anos. O que quero dizer é que ela era mais madura e tinha comigo uma relação com muito mais segurança do que os alunos de 20 anos. Os alunos que ingressam na universidade têm uma visão distorcida dos professores, eles criam um mito de que o professor é algo inacessível, já tem aquela coisa de senhor pra cá, senhor pra lá... isso já dificulta. E ela não tinha esse problema, já era uma pessoa segura, casada e já trabalhava artisticamente, portanto, já estava acostumada com a crítica. Um dia ela me perguntou: “- Isaías, como era Salvador?” E eu respondia. Passava um tempo, ela voltava a perguntar: “- E como era tal lugar?” E eu respondia. Até que um dia ela me chamou e concluiu: “- Isaías, você é um Google ambulante. Você devia escrever isso!” Essa provocação ficou marcada em mim, porque se eu atendi a observação dela é porque já tinha no meu íntimo algum tipo de pressão. Provavelmente eu já devia estar precisando desse estímulo para começar a trabalhar. Talvez até como crítica ao que eu tinha lido e ouvido sobre Salvador que eu achava equivocado. Porque quem leu o livro sabe que ali está história de gente, de pessoas. Você não pode contar a história de uma cidade onde não há pessoas. Onde não existam alegrias e tragédias, como a vida em si. E recebi vários telefonemas de pessoas dizendo que relembravam momentos da família ao ler o livro. É isso que eu quero, que o leitor leia e se sinta personagem do livro. 4- Conte-nos sobre como foi o processo de reunião das informações e fotos contidas no livro? Quanto tempo durou a sua concepção? Acho que tive muita sorte. Na família da minha mãe, eram sete filhos. Desses sete, cinco fotografavam, incluindo a minha mãe. O que era uma coisa raríssima, primeiro porque as pessoas não tinham essa preocupação em fotografar e segundo pelo fato de ser uma mulher a fotografa. Porque uma mulher fotografando, nos anos 50, era uma coisa extremamente rara. Homem fotografar já era raro, uma mulher fotografando era mais raro ainda. Os meus avós, a minha avó principalmente chegou a concluir apenas o equivalente o que corresponde hoje ao ensino fundamental. O que quero dizer com isso é que, nessa época, as pessoas escreviam muito pouco, pois a formação da língua culta era muito restrita. Então era muito comum as pessoas se comunicarem através de cartões postais. Resultado: meu avô resolveu colecionar esses cartões. Então eu tinha de um lado: muitos cartões postais, e do outro: muitas fotografias. A minha mãe tinha o hábito de escrever. Ela escrevia muito e tinha um diário! Minha mãe era apaixonada por Salvador, passou a infância toda no Rio de Janeiro, mas voltou adulta e amava Salvador. No livro tem uma parte do diário em que a minha mãe, onde ela conta emocionada sobre a sua viagem para São Paulo para acompanhar o meu pai que tinha que fazer uma cirurgia de retirada do pulmão. Ela teve que deixar os filhos na casa de parentes e foi acompanhar o marido nessa viagem. Eu comecei a juntar todas essas informações, muitos textos, muitas fotos. Optei por começar a narrativa, mas aí surgiu a dúvida: de onde começar? Não queria contar o que meu pai havia me contado, pois iria contar a história que me contaram. Foi então que percebi que eu tinha que encontrar um motivo pra começar o livro. Uma vez minha mãe pegou um desses diários de viagem e chamou a mim e o meu irmão e disse: “Tem muita coisa escrita aqui, um dia vocês terão conhecimento. Eu espero que depois que eu morra, vocês possam ter acesso à isso.” Ela estava me pedindo que enquanto ela fosse viva, que não pegássemos esse material. Ela não queria que eu visse antes, ela queria que eu visse depois. Então, eu fiz alguma pergunta a ela relacionada à um tio que morava em Sorocaba e que se tornou em um médico conceituado. Ela me contou a história e pegou um diário, da morte dele, de 1950, e me deu esse diário pra eu ler. E nesse diário eu descobri que meu pai tinha ido assistir ao jogo entre Uruguai e Suécia, no estádio do Pacaembu, em 1950, na Copa do Mundo. Mas meu pai não foi ao estádio! No trajeto ele recebeu uma ligação da minha mãe informando que meu tio havia piorado da doença e que o meu pai tinha que voltar à Sorocaba pra casa desse meu tio, onde encontrou o irmão dele quase morrendo. Eu pensei: Preciso contar essa história! Pensei em algo que prendesse a atenção do leitor. Porque ele pensaria: “que maluquice é essa, o cara está falando sobre memórias de Salvador, e abre o livro falando sobre o jogo de São Paulo?”. Das duas uma. Ou ele fecharia o livro e acabava a história, ou pensaria: aqui tem, quero saber o que vai acontecer. Quero saber porque esse cara está falando de futebol. Daí em diante, comecei a montar a narrativa. Você percebe que a história embora comece em 1950, ela volta para 1910, início do século, e aí vai, paulatinamente, em 1970. Eu tinha muita coisa produzida em casa. Muita coisa escrita como professor, como arquiteto. Muita coisa foi aproveitada. Muita coisa foi costurada. Então não é difícil perceber como juntei todas essas informações. 5- Qual sua visão sobre a atual situação do sistema urbano de Salvador? Quais aspectos são mais importantes para sua análise? O que ainda precisa ser desenvolvido? Acho que Salvador padece de um grave crime cometido contra ela a partir das grandes reformas urbanas em 1970, e eu acho que há tendências hoje de entender que esse mal pode ser corrigido. Primeiro: pra mim, fundamentalmente, toda a cidade no mundo, qualquer que seja o país, tem um centro. E esse centro é absolutamente identificado por todo mundo. Segundo: por ter um centro, ela tem, portanto, Norte, Sul, Leste e Oeste. E eles são referenciados ao Centro. Salvador perdeu isso completamente. Por não ter isso, ela tem uma estrutura urbana difícil de entender onde termina e onde começa. O bairro x está onde? Onde está o bairro y? Estão em que zona? Norte, Sul, Leste ou Oeste? Qual é a relação dele com o centro? Como fica a relação interbairros? Onde fica a relação de transporte centro x bairro? Como é que fica a relação bairro x bairro? Ninguém sabe! O transporte urbano de Salvador é uma loucura! Só quem mora aqui e que toma ônibus diariamente, é quem entende mais ou menos como funciona. Agora quem não mora e quer se situar nessa cidade, se perde completamente, porque não tem a menor ideia. Pra quem chega em Salvador é dificílimo entender como é que funciona o transporte. Quando você visita uma cidade, aliás, qualquer turista no mundo inteiro vai pro centro, porque sabe que é no centro que você tem, primeiro: o lugar pra onde todo mundo vai. É onde você tem a heterogeneidade. É como diz o professor da Universidade de São Paulo, Flávio Villaça: “Centro é o lugar de desiguais e dessemelhantes, e bairro é o lugar de iguais e semelhantes”. No bairro, você encontra pessoas mais ou menos como você, pessoas mais ou menos do seu nível social e cultural, pessoas que você conhece. Você procurou essa homogeneidade. Mas no centro você encontra a informação da diferença. Salvador perdeu isso. Não adianta fazer viaduto, abrir avenida... Ainda bem que Salvador tem um fato ao seu favor: ter sido construída a Estação da Lapa, que de alguma maneira dá essa noção de centralidade. Não só a Lapa. Salvador, por ser uma cidade de dois andares, tem duas grandes terminai. E tem em baixo: o Terminal da França e a Praça Marechal Deodoro, que são dois grandes centros de distribuição de transporte público. Ainda bem que temos isso! A construção do metrô consolida isso de alguma forma. Se efetivamente fizerem uma linha que vai até Cajazeiras e uma outra linha pela Paralela até Itapuã, isso consolida aquela região como central. Porque você vai ter dois grandes vetores: ou pela Paralela ou pela BR. Eu acho que fundamentalmente, independentemente de qualquer forma ou de qualquer desenho, Salvador precisa, urgentemente, definir a sua estrutura urbana. Quero saber como ela funciona. Se tem uma estrutura, é caótica. Além de implantar, efetivamente, um transporte de massa eficiente e espaços de lazer. Salvador carece de espaços de lazer, as pessoas não têm opções de lazer aos domingos. Elas têm que ficar em casa assistindo TV por não ter opções. O Parque São Bartolomeu, o Zoológico e o Parque da Cidade estão precisando de uma reforma e isso é barato! É mais barato do que construir viaduto, do que enterrar rios. 6-Em sua opinião, de que modo esta obra auxilia na reflexão sobre o planejamento urbano da capital baiana? Na verdade, nem pensei que meu projeto fosse esse. O que eu quero é que as pessoas não tenham vergonha de dizer que são soteropolitanos, ou que vivem em Salvador. E que elas encarnem o desejo de essa cidade voltar a ser digna, capacitada para nos dar uma vida agradável. Quero que as pessoas, ao conhecerem a sua história, gostem e tenham orgulho da cidade. Nada contra o moderno, nada contra o novo, mas não precisamos jogar fora a história da cidade. Temos que valorizar a nossa história. O charme de Salvador é o fato de ser uma cidade de dois andares, ninguém me convence que os turistas são atraídos à Salvador por causa do Iguatemi. Eles são atraídos pelo Pelourinho. Pela diversidade de paisagem e as surpresas existentes em Salvador. O que diferencia Salvador das outras cidades é a sua tradição e não o moderno, o recém-construído. Quero que as pessoas conheçam toda história e tenham consciência disso. 7- Existe algum outro projeto em andamento? Qual? Sim. Atualmente estou trabalhando em um texto. Mas ainda não tenho definição. Tem o mesmo princípio do Memória Urbana. Ele é calcado, principalmente, na profunda devoção que tenho por essa cidade. É um livro mais visual do que textual. Não vou falar muito, pois ainda não tenho ele pronto. 8-Deixe uma mensagem para os leitores da Edufba. Uma saudação à você que também acredita que a leitura é um mundo fantástico.