Jeferson Bacelar e Luiz Mott
No Espaço do Autor de setembro, a Edufba conversou com dois autores veteranos: Jeferson Bacelar (foto da direita) e Luiz Mott (foto da esquerda). Na entrevista, os escritores comentam sobre a experiência de escrever A comida baiana: cardápios de um prisioneiro ilustre (1763), lançado pela editora em julho de 2016. Discutem também sobre as relações entre o estudo antropológico e a gastronomia, os aspectos sociais envolvidos nesta combinação, e ainda abordam temas referentes a suas trajetórias profissionais e pessoas.
Jeferson Bacelar trabalhou durante muito tempo como professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), até que um dia resolveu se aposentar e dedicar-se à pesquisa. Tornou-se, então, pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais e professor das pós-graduações em Antropologia e Estudos Étnicos e Africanos. Publicou pela Edufba diversos títulos ao longo da última década. Eles foram: "Vivaldo da Costa Lima: intérprete do Afro-Brasil" (2007); "Política, instituições e personagens da Bahia (1850 – 1930)" (2013); e, "Gingas e Nós: o jogo do lazer na Bahia" (2014).
Luiz Mott é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela USP, mestre em Etnologia pela Sorbonne, doutor em Antropologia pela Unicamp e professor titular aposentado do Dep. de Antropologia da UFBA. Mott também foi membro da Comissão Nacional de Aids do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação do Ministério da Justiça, além de decano do Movimento Homossexual Brasileiro. É autor de 15 livros, sendo "A comida baiana", sua segunda publicação pela Edufba, tendo escrito e publicado em 2010 a obra "Bahia: inquisição & sociedade".
Por João Bertonie e Mariana Trindade
Conte-nos um pouco sobre a trajetória profissional e acadêmica de vocês.
Luis Mott: Entrei na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP em 1965, nos anos de chumbo da ditadura militar, exatamente na faculdade mais “esquerdista” do Brasil, tendo como professores Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Eunice Durham. Dentro das Ciências Sociais, logo me apaixonei pela Antropologia Social, e ainda acadêmico iniciei minha pesquisa sobre as feiras nordestinas, visitando a Bahia e Sergipe diversas vezes para coletar material, redundando em minha dissertação de mestrado defendida na Sorbone (1971) e Doutorado na Unicamp (1975), estudando as feiras do baixo rio São Francisco. Com o tempo, porém, senti-me muito mais identificado com a pesquisa histórica, vasculhando os principais arquivos nacionais e do exterior à cata de documentos sobre o Brasil Colonial.
Jeferson Bacelar: Eu comecei ensinando nos colégios N.S. de Nazaré e N. S. de Lourdes, depois Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, Prefeitura Municipal de Salvador, Centro de Educação Tecnológica da Bahia, Fundação Cultural do Estado da Bahia, Secretaria de Comércio, Indústria e Turismo de Salvador, Departamento de Antropologia e Centro de Estudos Afro-Orientais. Tive a sorte de passar pela Universidade do Pelourinho – Fundação do Patrimônio, atual IPAC – onde de fato adquiri uma formação como pesquisador, seja na historiografia, seja no campo sócio-antropológico. Influenciado por Vivaldo da Costa Lima e Júlio Braga, foi natural o interesse pelo campo dos estudos afro-brasileiros e as relações raciais. Assim, quando apareceu uma vaga para ensinar Folclore no Departamento de Antropologia, minha amiga Maria do Rosário avisou-me. Era um concurso de títulos, avaliado pelo Departamento, e assim começou a minha carreira de Antropólogo. Naquele momento, eu já tinha uma relativa produção no campo extra-acadêmico, com trabalhos sobre o Rosário dos Pretos, Pituaçu, São Lázaro, história de vida de um mendigo, parte histórica do trabalho sobre Cachoeira e Porto Seguro, além do trabalho de levantamento da árvore genealógica das habitações do Pelourinho, além de minha dissertação de mestrado sobre A família da prostituta, que viria ser publicada pela Ática. Tantos foram os parceiros e amigos que adquiri e me ajudaram nesse relativo percurso que, para evitar injustiças, prefiro não citá-los. Portanto, tornar-me antropólogo, eu diria que foi um feliz acidente causado pela minha saída da Fundação. E o CEAO, foi obra do meu grande amigo Júlio Braga que chamou-me para ser seu Vice-Diretor. Nele, vi a sua consolidação e apogeu, agora acompanho a sua morte lenta e sofrida. Mas, não se assuste com o meu pessimismo, o meu partido anarco-suicida, fundado por um colega, não tem muita fé nos seres humanos, nem mesmo em nós. No decorrer dos anos escrevi livros e artigos, sobre prostituição, relações raciais, imigrantes, fotografias, instituições, futebol e comida. Atualmente sou pesquisador do CEAO e professor das pós-graduações em Antropologia e Estudos Étnicos e Africanos.
O livro “A comida baiana” foi guiado por um manuscrito inédito do Arquivo Público da Bahia. Como vocês tiveram acesso a esse documento histórico? Alem disso, quando e como decidiram que ele renderia história para um livro?
LM: Foi ainda no final dos anos 70 que descobri no Arquivo Público do Estado da Bahia esse precioso documento inédito de 1763 registrando 174 cardápios de um prisioneiro ilustre e incógnito. Manuscrito ímpar pois não se tem notícia na documentação colonial brasileira de uma listagem tão extensa de refeições, por 87 dias consecutivos, muito embora a identidade do presidiário tenha sido mantida em sigilo. Primeiramente fiz uma palestra no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em 1982 descrevendo tal documento e por mais de duas décadas deixei-o engavetado até que sugeri ao Prof. Jeferson Bacelar, especialista em antropologia da alimentação, que escrevêssemos um livro a quatro mãos analisando tal manuscrito. Descobri, transcrevi, sistematizei e fiz acréscimos e a revisão crítica do texto final do livro, cuja redação é primordialmente de meu querido colega Jeferson Bacelar.
JB: Todo o mérito é de meu colega Luiz Mott. Ele guardou o documento, levantado no Arquivo Público da Bahia, por mais de 30 anos. Um dia, no ano passado ele chamou-me e perguntou se eu me interessaria em fazer uma parceria em torno do documento. Embora não sendo historiador, eu sempre digo que há documentos fracos e fortes, sobretudo para meus orientandos que se aventuram no campo historiográfico. É difícil acompanhar a produção nacional e mais ainda internacional, entretanto, não há uma só indicação da existência de um documento apresentando, no século XVIII e XIX, o cardápio de um individuo por 87 dias. Se vai dar em livro ou artigo, só Deus ou o Diabo sabem. Agora mesmo estou escrevendo com um amigo paulista um trabalho sobre a culinária de Manuel Querino. Pensávamos que seria um artigo, agora pensamos que vai dar um livro. Interessante será lançar o livro no IGHBA, na quinta-feira, ás 17 horas, dia 18, onde Mott falou pela primeira vez sobre o documento, passados mais de 30 anos. Vamos sentir falta de nossa querida amiga Consuelo Pondé.
Na obra, vocês remontam o panorama social do Brasil Colonial, para melhor contextualizar as tradições e evolução das práticas alimentares do império português. Numa perspectiva mais ampla, qual a importância e significado da gastronomia nos estudos antropológicos? Sobre que outros aspectos sociais pode vir a refletir uma tradição alimentar?
LM: A comida é parte vital não só da vida física dos seres humanos mas também alimento da vida social, já que a busca e satisfação das necessidades alimentares norteiam a divisão do trabalho, o sistema de circulação de bens e mercadorias, as regras de sociabilidade e a etiqueta, sem falar nas cerimônias associadas aos alimentos rituais. Cada povo, cada cultura e cada época, seleciona o que é bom para comer e como devem ser preparados e ingeridos os bens comestíveis. As práticas alimentares do Brasil contemporâneo são herdeiras primordialmente do modelo culinário português-ibérico-mediterrâneo, enriquecido pela inclusão de produtos, temperos e receitas recuperados das demais colônias do império português, notadamente da Índia. A comida brasileira incluiu desde seus primórdios, numerosos ingredientes das culturas indígenas, assim como vegetais e receitas provenientes do território africano.
JB: Há uma longa tradição de interesse dos antropólogos pela alimentação, de Audrey Richards a Lévi-Strauss. Mas a sua consolidação como um campo especifico da Antropologia somete vem a aparecer nas últimas décadas do século XX. Ainda existe muita ignorância na Academia em relação a determinados temas, como é o caso da alimentação ou do futebol. Se estudassem história veriam que a independência da Bahia foi ganha pela comida. A gastronomia é a arte do bem comer ou bem viver, em grande parte privativa dos ricos e elementos providos de alto capital cultural e educacional. Ela é apenas um ramo dos estudos sobre a alimentação, que envolve a produção (economia), a distribuição (política), a preparação ou culinária ( religião, gênero e classe), até o consumo ( identidade e diferenciação dos grupos). Ainda poderíamos incluir as sobras ou restos de alimentos (consumo e rituais). Comida envolve abundância e fome, economia, política, saúde e doença, controle social, poder e distinção, enfim, ela é sempre polissêmica. E esse é um problema para os antropólogos que sofrem a concorrência das áreas duras: Agricultura, Economia, Biologia, Medicina, Química. O sonho é sempre de uma interdisciplinaridade, mas raramente isso tem ocorrido. Sendo superonívoros, escolhemos o que comemos. Porém, hoje, mais do que nunca existe um confronto desigual das cozinhas tradicionais diante da avalanche midiática em torno do novo, do fast food, das multinacionais dos alimentos prontos ou semiprontos, da “loucura da esbeltez” e da dieta contínua, provocando a bulimia e a anorexia, o avanço das cozinhas étnicas internacionais, os equipamentos que fazem quase tudo ou tudo na cozinha, da multiplicidade de menus em uma mesma sociedade. Enfim, sem o pessimismo de Fischler, a gastroanomia é real, mas o pior é ausência de políticas em torno da alimentação. Por que o governo brasileiro permite a importação do salmão chileno de cativeiro, alimentado por ossos de animais?
No livro, vocês citam elementos da culinária baiana como carne de porco e carne de vaca, cuja presença nos pratos das pessoas do século XVIII refletia uma época de prosperidade ou certa posição social mais privilegiada. De que outras formas as configurações daquelas refeições ajuda a explicar a comida baiana daquela época?
LM: Os colonizadores lusitanos tinham como base alimentar o pão de trigo e outros cereais, o azeite de oliva, o vinho e muito peixe, além de vegetais e frutas típicos dos climas temperados. Carne rara, consumindo-se mais o porco do que galinha ou carne de vaca. Cardápios adaptados à condições sócio-econômicas dos consumidores, a grande maioria dos camponeses e gentalha urbana alimentando-se de sardinhas e sopas de legumes com pão preto, enquanto a nobreza e clero consumiam peixes nobres, carne bovina e doçaria sofisticada. Ao estabelecer-se na América Portuguesa, os colonizadores mais pobres adaptaram-se às condições locais: adotaram como base alimentar a farinha de mandioca e seus derivados, genericamente chamada de “pão da terra”, incluindo caça de animais selvagens, peixes e crustáceos, frutas nativas. O desejo de consumo de carne de vaca é constante em nossa história, mas devido ao seu alto custo, era privilégio dos endinheirados, contentando-se os despossuídos com a carne de porco, inclusive seus miúdos e partes menos nobres. Um elemento importante para resgatar a histórica da alimentação baiana e de toda cristandade era a obrigação de todo católico se abster de carne e jejuar durante toda a quaresma e nas vésperas das principais festas litúrgicas, chegando a mais de de 60 dias sem comer carne por ano.
JB: Achamos que alguns elementos da configuração da época ficam explícitos: 1) a preponderância da matriz portuguesa em nossa alimentação, mas já com adaptações aos produtos locais; 2) o aparecimento da farinha e de frutas locais; 3) a primeira aparição na historiografia do feijão, do arroz e da farinha, a diferença mais marcante da cozinha portuguesa; 4) a lista dos alimentos nos remete às receitas e culinária, à arte e técnica de cozinhar; 5) os preços indicando o status dos produtos e ingredientes. Concluindo, comida de privilegiados distante da tradicional comida das camadas populares da Bahia, livres e não-livres, brancos e pretos. Uma comida de pobres, ao contrário do prisioneiro, híbrida de componentes portugueses, indígenas, crioulos, africanos e mestiços.
Luiz Mott, o senhor é conhecido internacionalmente por ter fundado o pioneiro Grupo Gay da Bahia, em 1980, além de ser autor de vários livros com questões relativas à homossexualidade e à homofobia. Sua militância pessoal, política e acadêmica influenciou e/ou está presente na construção de “A comida baiana”?
LM: Costumo me identificar como etno-historiador, já que meus trabalhos buscam sempre o diálogo da temática e metodologia da antropologia com o material e perspectivas da historiografia. Comecei minha vida acadêmica pesquisando e escrevendo sobre Antropologia Econômica (Feiras e Mercados Nordestinos), passando à Etno-demografia Histórica (Escravidão e relações raciais em Sergipe Imperial e Piauí Colonial), em seguida mergulhei na documentação inquisitorial, concentrando-me nos temas ligados à sexualidade e religiosidade popular sob a perspectiva da Etno-História. Desde 1980, ao fundar o GGB, consegui a aprovação de importantes resoluções de cinco sociedades científicas brasileiras, posicionando-se contra a homofobia e pleiteando o incremento de pesquisas e financiamentos tendo como tema a sexualidade e a homossexualidade em particular. Publiquei diversos livros e muitos artigos resgatando a história da homossexualidade no Brasil, inclusive tirando do armário alguns ícones nacionais, como Zumbi dos Palmares, o Governador da Bahia Diogo Botelho, a Imperatriz Leopoldina, Santos Dumont, entre outros. Alguns críticos me acusam de “homossexualizar” tudo que pesquiso ou de só escrever sobre o “amor que não ousava dizer o nome”. Não é verdade: em meu principal livro, “Rosa Egipcíaca: Uma santa africana no Brasil” e nesse último, “A Comida Baiana”, não há qualquer referência a homofobia ou homossexualidade. Embora meu colega Prof. Jeferson Bacelar tenha cogitado a possibilidade de nosso ilustre e incógnito prisioneiro ter sido gay... Por que não?
Professor Jeferson, o senhor administra o blog babadepalavras.blogspot.com, que trata de comida e futebol. Existe alguma relação entre o conteúdo do blog e o tema do livro “A comida baiana”?
JB: Claro que sim. O blog tem como objetivos básicos divulgar a produção baiana em alimentação e futebol. E também apresentar a produção internacional não-traduzida. Mas não existe rigidez, às vezes homenageio amigos que trataram de outros temas. Por exemplo, a família de Miguel Santana. Ele, como minha vida, não tem a regularidade que eu pretendia. Estou pensando em criar um módulo chamado Noticias da Província, onde citarei livros que li ou considero importantes, editados na Bahia.
Deixem uma mensagem para os leitores da Edufba.
LM: Dentre as Editoras Universitárias do Brasil, a EDUFBA vem se destacando não só pelo volume de suas edições, como sobretudo, por sua diversidade e qualidade das obras publicadas. Dispondo de uma plêiade de competentes pareceristas, a EDUFBA garante elevado nível de belas edições nas diferentes áreas acadêmicas. Sinto-me honrado em ter duas de minhas obras com o selo da Edufba.
JB: Uma certa tristeza pelo pouco interesse pela antropologia da alimentação e do futebol na UFBA. Penso em relação aos dois temas que devem haver algumas pérolas nas outras Universidades baianas, como foi o caso do livro de Avanete Souza, A Bahia no século XVIII ou o belo livro sobre o futebol feminino, editado pela EDUFBA.