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José Amarante

Edufba: Fale um pouco sobre a sua formação acadêmica, profissional e pessoal.

José Amarante: Primeiramente, gostaria de agradecer à Edufba pelo convite para esta entrevista, principalmente agora, no ano em que faço 50 anos, de forma que o momento é mesmo bom para balanço. São, por vezes, misteriosos os caminhos que se traçam para que nos tornemos o que somos, para se desenharem supostas escolhas, tantas delas tão aparentemente estranhas a nós e tão imprecisos os momentos nos quais por elas seguimos que a sensação é a de que de conscientemente nada se fez. Acho bonito quando os colegas dizem que sempre sonharam em ser professores. Bonito mesmo. Quanto a mim, eu me tornei professor por acaso. E isso poderia ser envergonhante de se declarar, logo eu que, na profissão, vivo há mais de trinta anos. Mas não me apouca o início, o ponto no tempo em que se faz a “escolha”, porque na verdade sinto como se tivesse sido, de alguma forma e por tramas do destino, escolhido pela profissão. Eu me explico: sou do interior da Bahia, de uma pequena cidade chamada Ituaçu, na qual, em minha adolescência, somente existia a possibilidade de se fazer magistério e contabilidade. De família desprovida de maiores recursos, escolhi fazer os dois cursos, um vespertino e outro noturno, naquele momento na esperança de que uma daquelas direções pudesse dar certo. Nada inspirador o ponto da escolha, o seu motivo. Foi assim que me tornei professor nos idos da década de 1980. Também nada inspirador o momento em que começo a atuar

profissionalmente, na Amazônia paraense, por volta dos meus 18 anos. Havia a promessa de emprego na fábrica de celulose do Projeto Jari e, feita a longa viagem, logo busquei me direcionar a uma entrevista de emprego na fábrica. No caminho, vi uma placa numa escola (a Fundação Educacional do Jari): “precisa-se de professores”. Tendo cursado o magistério, entrei no local e, tendo feito naquele mesmo momento uma prova seletiva, no dia seguinte comecei a atuar como professor, deixando de lado a entrevista na fábrica de celulose. Permaneci no Jari por uns seis ou sete anos, até o momento em que começou a me incomodar ter que responder que apenas tinha estudado magistério, sem ter feito um curso superior. Naquele tempo, era difícil inscrever-se à distância para um vestibular em Salvador, quando eu já planejava um retorno para continuar meus estudos. Falar com a família, dada a distância, era algo difícil, em tempos sem Internet ou em momentos em que apenas famílias ricas tinham um telefone em casa (um bem valoroso a que poucos tinham acesso). E foi assim que, sem muitos combinados, solicitei por carta a uma professora de minha cidade do interior, que me inscrevesse no vestibular da Universidade Federal da Bahia (UFBA). No momento da inscrição, sem haver discutido comigo, dadas as dificuldades de contato telefônico, ela terminou por me inscrever no curso de Letras Vernáculas, somente porque achou o nome bonito (e talvez porque sabia que eu gostava de ler e escrever). Foi assim que, tendo sido aprovado, eu comecei a estudar na UFBA, passando a me dedicar às Letras por escolha de um terceiro. Aí fiz minha graduação (sem recursos, não haveria outra possibilidade para mim a não ser a tão sonhada universidade pública), fiz o mestrado e o doutorado, sempre na área das Letras. Tornei-me professor da UFBA já atuando na área de latim e, tendo defendido uma tese sobre ensino de latim no Brasil, fui agraciado com o Prêmio Capes de Teses de 2014, o que me permitiu um pós- doutorado fora do Brasil, na Universidade de Siena, na Itália, com recursos da Capes. Dessa experiência, nasceu “O livro das mitologias de Fulgêncio”, lançado em maio de 2019, com o apoio da Edufba e com os prometidos recursos do CNPq. Hoje, sinto-me feliz por a profissão ter me escolhido. E, de mais a mais, acho que a atividade de professor foi me tornando uma pessoa melhor, de forma que ela serviu a mim talvez mais do que eu tenha servido a tantas crianças e jovens com os quais trabalhei nos últimos trinta anos. Não me apouca mesmo a escolha ter sido alheia a motivos nobres ou a sonhos de infância. Olhando para trás, e pensando com Drummond, talvez a minha história, do jeito dela, seja mesmo ao menos tão bonita quanto a de Robinson Crusoé.

Edufba: Como surgiu o  seu interesse pelos estudos clássicos?

José Amarante: Ao iniciar meu curso de Letras Vernáculas, deparei-me com as disciplinas de língua latina. Naquele momento, achei um privilégio poder estudar latim, eu que tinha vindo de uma escola pública, com uma formação tão lacunosa. Minhas experiências com a língua latina e com a cultura clássica eram, então, apenas aquelas que todos têm: temos todos, em alguma medida, a sensação da longevidade de certos termos e expressões, de certos elementos de nossa cultura literária. Mas nada ia além disso. Entrar numa sala de aula de latim me fazia lembrar as ladainhas de Nossa Senhora cantadas em latim na minha infância e de uma inscrição num arco ao alto na Igreja Matriz de minha cidade: monstra te esse matrem (“mostra que és mãe”), uma inscrição que, em minha infância, tinha algo de mágico, com a palavra ‘monstra’ no alto me fazendo crer, desde já, nos prodígios que se escondem nas palavras; e talvez já pensasse com Unamuno que é interessante quebrar as palavras para ver o que tem dentro delas. Eram, então, três os componentes curriculares obrigatórios de língua latina, mas eu resolvi fazer todas as disciplinas de latim disponíveis, ainda que não necessárias ao meu curso (nunca me preocupei em fazer apenas o que era obrigatório; se eu podia estudar gratuitamente quantas disciplinas eu desejasse, preferi dar vez ao privilégio de estudar tudo de latim e segui adiante). O setor de língua latina à época vivia o período de cansaço, dadas as perdas do latim ao longo das décadas passadas, especialmente após os baques decorrentes da LDB de 1961. Havia poucos alunos interessados em seguir o curso, de modo que o setor oferecia as disciplinas basicamente a mim e o fazia contando com a generosidade do Professor Mário Augusto, do setor de alemão, mas que, formado também em Letras Clássicas, aceitava ofertar as disciplinas para um jovem que queria aprender a língua. Tendo concluído o curso de Letras Vernáculas e tendo estudado todo o currículo de latim e alguma pouca coisa de grego, tornei-me professor substituto de língua latina na UFBA e, em seguida, atuei como professor em instituições privadas, até que, por concurso realizado em 2009, iniciei minhas atividades como professor em regime de dedicação exclusiva na Universidade, onde tenho participado da renovação da área, em nossa instituição, junto aos demais colegas de latim e grego.

Edufba: Quem foi Fulgêncio? Quais eram as características da sua obra?

José Amarante: O que se sabe sobre Fulgêncio deve-se a certos registros no Prólogo do Livro I de suas Mitologias, mas, dado que é difícil estabelecer, numa obra ficcional, aquilo que é vida vivida do que é figuração literária, somente podemos considerar aquelas informações como pistas imprecisas para o conhecimento sobre o autor. O que hoje considera-se seguro dizer é que Fulgêncio, tendo sido confundido com São Fulgêncio, bispo de Ruspe (pequena cidade da província romana Bizacena, na África, onde hoje é a Tunísia), nasceu também em Cartago e viveu entre a segunda metade do século V e a primeira metade do século VI. Ele é conhecido pelo epíteto “o Mitógrafo” por conta do sucesso de sua obra mitográfica ao longo da Idade Média. Situando-se nesse período de transição entre a Antiguidade tardia e a Alta Idade Média, o Mitógrafo, não sendo notadamente um defensor explícito do cristianismo, não deixa de se inserir entre aqueles que, sob as vestes do estoicismo senequiano e do neoplatonismo, tomam os temas e histórias da Antiguidade para que, numa nova roupagem, sejam “adequadamente” lidos e interpretados pelos jovens de seu tempo sob a égide de uma filosofia moral cristã. Assim, Fulgêncio, do mesmo modo que fizeram os principais intelectuais de sua época, toma para si a incumbência de recuperar e reordenar o máximo possível do saber antigo, visto que todo aquele conhecido patrimônio cultural do mundo greco-latino que se manteve após o fim do império romano “encontra-se disperso por uma miríade de obras complicadas e de difícil leitura por homens capazes de se referir apenas a conhecimentos e a noções do tipo compendioso e simplificado” (STOPACCI,2012. p. 502).

Edufba: Qual foi o legado deixado pelo autor?É possível estabelecer algum diálogo entre os temas abordados na sua obra e as questões caras ao mundo de hoje?

José Amarante: Fulgêncio foi certamente bastante lido na Idade Média até que surgissem obras de explicação mitográfica mais densas, como a “Genealogia dos deuses pagãos”, de Boccaccio, que o cita diversas vezes. Mas também foi bastante criticado por sua forma de ver e explicar os mitos ou por apresentar dados imprecisos sobre autores e obras utilizados como fontes, a ponto de Comparetti, em 1872, questionar duramente até o seu bom senso. O interesse por sua obra reaparece no final do século XIX com a primeira edição crítica (HELM, 1898), e o século XX vê as pesquisas em torno de sua obra se ampliarem. Gregory Hays (um de seus maiores estudiosos), em 1996, por exemplo, defende que “tanto a Divina Comédia de Dante quanto a Primavera de Botticelli seriam obras muito diferentes se Fulgêncio não tivesse escrito a sua”. Evidentemente, a perspectiva apresentada por Fulgêncio traz reflexões sobre como lidamos com certos temas na atualidade. Quando concepções de mundo entram em confronto, como vimos hoje nas disputas de narrativas sobre os dilemas da história e os da contemporaneidade, naturalmente há que se perguntar, sempre que possível, sobre os espaços de negociação. Imaginemos, por exemplo, como deve ter sido para os primeiros cristãos – crentes num único Deus – terem de lidar com a infinidade de deuses de uma cultura pagã que se mantinha como ideal cultural e base da formação intelectual. Imaginemos como poderia ser compreendido um mito com forte carga homoerótica, como o de Ganimedes, o belo jovem por quem o grande deus Júpiter sentiu-se seduzido e, metamorfoseado em águia, o possuiu em pleno voo. Imaginemos de que forma os cristãos poderiam compreender histórias de transgeneridade, como a de Tirésias, que, ao separar duas cobrinhas em cópula, transforma-se em mulher, e vive assim por sete outonos até voltar a sua forma masculina e depois, experiente de ambos os sexos, resolver a contenda dos deuses Júpiter e Juno sobre quem sentia mais prazer no sexo, o homem ou a mulher. Para sobreviverem, então, numa cultura cristã, os mitos precisaram ser reinterpretados alegoricamente. Nesse sentido, veja-se, por exemplo, como o cinema trouxe ao nosso milênio o mito do adivinho tebano no filme Tiresia, de Bertrand Bonello (2003). As últimas décadas viram o crescimento acentuado da violência associada a sexo e gênero e também testemunharam a afirmação e o reposicionamento social dos gêneros não binários. O Tiresia de Bonello emerge nesse contexto. Não é à toa, por exemplo, que a sonoridade do português brasileiro, ao longo do filme, tanto se acentue, já que o Brasil encabeça a lista dos países mais violentos à população trans. Uma pergunta poderia ali nos inquietar: estaria lá desenhado o personagem do mito antigo ou um transexual brasileiro vivendo em seu trottoir na França contemporânea? Com efeito, lá estão ambos.

Edufba: Como é o processo de tradução de um texto escrito numa língua morta, como o

latim, no caso do “Livro das Mitologias”?

José Amarante: Obviamente, ao se traduzir um texto, a primeira questão que se coloca ao tradutor é a edição do texto a ser considerada. Se se trata de um texto moderno, é possível que tal obra tenha apenas uma única edição, de forma que o tradutor possa seguir seu processo tradutório sem ter que lidar necessariamente com questões de ordem filológica. No caso da tradução de textos antigos, como não chegou até nós nenhum texto autógrafo, mas apenas as sucessivas cópias medievais, um dos primeiros tópicos na lista de demandas do tradutor é a questão da definição de uma edição crítica de referência. Para alguns autores, é possível que haja mais de uma à disposição; para outros, como é o caso de Fulgêncio, apenas uma, a de Helm, de 1898, é a única completa. Mas é possível que o tradutor decida também reeditar o texto e considerar, então, revisitar os códices e estabelecer o texto confrontando-o com as demais edições existentes. Quando o tradutor opta por seguir uma edição de referência e organizar uma edição bilíngue, ele pode apenas se deter no trabalho de tradução, estampando-a ao lado da versão do texto na língua fonte, ou pode seguir uma edição de referência, mas rediscutindo pontos do texto para os quais não há muito consenso entre editores e comentadores ao longo do tempo. Essa última foi a nossa escolha com a edição das Mitologias de Fulgêncio, de forma que seguimos a edição de Helm, mas buscamos interferir no texto, retomando pontos problemáticos e oferecendo uma discussão de natureza filológica, buscando atender leitores interessados na transmissão do texto. Uma outra questão considerada diz respeito a uma concepção de tradução que o tradutor quer assumir ou as concepções de tradução que quer que seu texto reflita. Apesar de não nos considerarmos preocupados com certos aspectos de uma teoria de tradução como equivalência, devedora de um suposto “original”, direcionamo-nos a procurar manter certos jogos poéticos propostos pelo autor do texto latino, de forma a – assumidamente – conversar com o texto fonte, mantendo em português certos estranhamentos supostamente provocados pelo texto em latim. Um outro aspecto que devo destacar diz respeito ao latim utilizado por Fulgêncio. A tal “língua morta” registra-se com uma vivacidade interessante, se observamos suas instabilidades documentadas nas lições variantes dos códices. Se, por um lado, essas variações atestadas podem dificultar o trabalho do tradutor, por se afastarem por vezes do conhecido latim do período clássico, por outro, considerá-las na tradução permite que se reconheçam as diversas feições que o texto teve ao longo do tempo, de forma que a edição busque despir-se de uma roupagem essencialista, idealizadora do “original” perdido, e assuma, minimamente que seja, elementos da história desse texto.

Eudufba: Como o público de fora da academia pode se beneficiar da leitura de uma obra

como essa?

José Amarante: Vou retomar aqui algo que digo na premissa do livro, citando Ausônio, um poeta do século IV, que diz assim no texto “Recomendação do livro” que abre sua obra epigramática: “Há o que leias pela manhã, há também o que leias à tarde. / Eu uno as coisas graves àquelas aprazíveis, para que agradem em equilíbrio” (AVS. epigr. 1, 1-2). Então, como “cada página tem seu tempo” e a tradução que publiquei não pretende ter apenas “um só tipo de leitor”, sua composição busca trazer Fulgêncio a um leitor não especialista – razão pela qual o texto latino acompanhado da tradução portuguesa (ao que parece a primeira) não apresenta as notas em rodapé – e procura, ao mesmo tempo, trazer o autor a um possível especialista interessado em particularidades filológicas da obra fulgenciana – razão pela qual acrescentamos notas explicativas e notas críticas ao final do volume. Então, o público fora da academia poderá conhecer como os mitos pagãos puderam sobreviver na Idade Média, graças à sua interpretação, antes de chegarem até nós em reedições dos clássicos.

Edufba: Deixe uma mensagem para os seus leitores e leitoras.

José Amarante: Obviamente, uma mensagem de um professor de latim irá sempre desembocar numa declaração de desejo de que se estude mais a língua. Então, gostaria de desejar que os leitores que não se contentam em ler o conteúdo da obra em uma tradução e que tenham interesse de ler alguma coisa diretamente do latim que procurem realizar um de nossos cursos gratuitos oferecidos pelo Nupel (Núcleo Permanente de Extensão em Letras), com inscrições semestrais no site www.nupel.ufba.br. No Nupel oferecem-se cursos gratuitos de latim e grego clássico.

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