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Ladjane Alves Sousa

Edufba: É um prazer tê-la conosco no Espaço do Autor. Conte um pouco sobre o seu percurso acadêmico e profissional e sua atual área de atuação.

Ladjane Alves Sousa: Olá! É um prazer e honra participar desta entrevista com vocês. Agradeço desde já o convite. A Edufba é a editora do meu coração, sobretudo pela sensibilidade e o interesse em abrir espaço, de maneira tão séria e competente, para as professoras e os professores da educação básica. Eu fiz dois ensinos médios, quero dizer, me formei em Magistério nível médio no Instituto de Educação Isaias Alves (Iceia), em 1999, e estudei no Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFETBa (2001), atual Ifba. Sou pedagoga (2008) e mestre em educação (2012) formada pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), instituição pela qual tenho enorme respeito, carinho e orgulho.

Antes mesmo de entrar para o curso de pedagogia, iniciei, em 2002, o curso de biologia e, em 2004, o curso de ciências sociais, ambos os cursos na Ufba, universidade na qual tenho a honra de hoje ser doutoranda em educação desde 2020. Essas duas graduações que não cursei até o final, biologia e ciências sociais, foram cursos que entrei, porém, saí, pois, meu coração levou-me para onde minha alma solicitava. Entretanto, foram experiências extremamente relevantes para minha formação.

Atualmente sou professora e coordenadora pedagógica na Rede de Ensino Pública do Município de Lauro de Freitas, mas, antes de me tornar funcionária pública neste município, algumas experiências foram relevantes e formativas para meu processo acadêmico e profissional. Fui bolsista no Programa “A Cor da Bahia”, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Ufba (2002), estagiária no Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) em 2003, colaboradora voluntária do Instituto Cultural Beneficente Steve Bico, diretora cultural e pedagógica da Associação de Resgate da Cultura Original-ARCO Capoeira desde 2010 e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação e Currículo (Gpec) desde 2008 e do Grupo de Pesquisa História e Memória da Educação Brasileira (Himeb), desde 2016.

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Edufba: Quando você decidiu que trabalharia com literatura infantil?

LS: Na realidade, eu já escrevia poesias e contos diversos desde muito mocinha, escritas que poderiam ser lidas por pessoas de todas as gerações, desde a infância aos idosos. Alguns muito mais voltados para crianças, outros para os adultos, eu escrevia a canção de minha alma. Mas a decisão de publicar veio quando escrevi o conto “Rainhas”. Escrevi para inspirar as professoras da escola na qual sou coordenadora pedagógica, em Lauro de Freitas, a serem ainda mais literárias. Quando se trabalha com a infância é importante resgatarmos as nossas infâncias, nossos traumas, nossas faltas, nossas felicidades, e, quando escrevi “Rainhas”, queria construir uma experiência de subjetivação à esquerda, ou seja, dizer e reafirmar para as professoras, uma grande maioria de mulheres pretas da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, que elas eram rainhas, importantes, especiais.

Sempre em momentos de formação continuada em lócus na escola, minha escrita aparecia para resgatar, homenagear, brindar nossa existência e ancestralidade. Foi quando algumas professoras, amigas como Rita Suely e Ana Lúcia, em 2017, disseram para mim que já estava na hora de publicar. Eu já publicava as poesias desde 2010, mas nunca tinha publicado um conto. Foi assim que as palavras encontraram um chão para morar. A parceria com a Edufba e a sensibilidade de Flávia Goulart foram essenciais.

 

“As diferentes formas de ser, de existir, de viver, de amar e de produzir cultura são muito diversas e não são exceção; a exceção é a homogeneidade, pois ela existe enquanto projeto ideal e de dominação heteronormativa.”

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Edufba: “Mães de Luza” é a sua segunda obra infantil publicada pela Edufba. Você planeja transformar suas obras em uma espécie de coletânea?

LS: A esperança que tenho é que as literaturas infantis que venho escrevendo possam viajar por vários lugares e que toquem a alma de várias pessoas. Minha escrita é política e de subjetivação à esquerda, ela busca inserir outros personagens, espaços, contextos e territórios pouco retratados, ainda hoje, na literatura infantil. Os escritos de minha autoria buscam valorizar outras narrativas, distantes da hegemonia euro-norte centrada. “Mães de Luza” é essa possibilidade de fazer, como diz Leandro Colling, “Que os outros sejam o Normal”. O livro de Leandro Colling que cito, e que foi publicado pela Edufba, é muito mais complexo que a conotação que busco trazer aqui, mas o uso como referência para localizar as experiências humanas como complexas e dizer que não dá para simplificá-las. É essa diversidade que é o normal, não o contrário. As diferentes formas de ser, de existir, de viver, de amar e de produzir cultura são muito diversas e não são exceção; a exceção é a homogeneidade, pois ela existe enquanto projeto ideal e de dominação heteronormativa.

Considero a literatura, como sendo a arte que tem como objeto a palavra poética, uma forma de registrar literariamente seu próprio tempo. Se um dia for relevante e possível transformá-las em coletânea, estou aberta para isso, mas por hora considero bom caminharem com seus passos pois penso que cada livro tem muito a ressignificar em nossa sociedade. Aí já sou eu, também, tietando minha escrita, (risos).

 

“Quando se trabalha com a infância é importante resgatarmos as nossas infâncias, nossos traumas, nossas faltas, nossas felicidades”

 

Edufba: A inclusão é um tema recorrente em suas obras. Como a sua vida pessoal e perspectivas sobre o mundo influenciam na construção de suas histórias?

LS: Minha história, desde a infância, é de uma menina/mulher preta nascida na favela. Tenho bases familiares de experiência de ativismo social e cultural junto aos grupos populares dos quais faço parte. Minha tinha Dalva Maria (em memória), junto com outros membros da família e alguns vizinhos, nos inseriu em um contexto de pensar a sociedade e a cultura desde a infância, pois o grupo familiar organizava festas, apresentações culturais, distribuição de alimentos, roupas, cobertores, brinquedos, entre outros, para a comunidade. Nesta foto, que disponibilizo para vocês abaixo, eu sou a menina à direita, aos meus 6 anos de idade, em uma apresentação de rua na comunidade do Vale do Matatu, mais conhecida como Baixa do Tubo. E foi neste contexto que minha subjetividade e consciência política foram sendo construídas.

As narrativas que escrevo resgatam um pouco dessas experiências de honra à ancestralidade, de valorização e de autoafirmação das comunidades populares. Elas falam das experiências de sermos mulheres e homens, pretas e pretos, com suas diferentes performances corporais, experiências e subjetividades. A sociedade brasileira, a nossa visão ocidental, ainda insiste em ser patriarcal, classista, racista, sexista, homofóbica, transfóbica, gordofóbica e valorativa do capacitismo, entre outros aspectos. O que escrevo tem relação com uma forma de olharmos para quem somos enquanto mulheres, homens, pretas, pretos, nascidos em bairros da favela, a partir da nossa localização social e do nosso lugar de fala, a partir das nossas próprias narrativas e percepções sobre quem somos, desconstruindo as visões distorcidas que a matriz colonial, o processo civilizatório vivenciado no Brasil e a burguesia criou (e cria) sobre nós.

 

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Edufba: A literatura, por natureza, é um ato revolucionário. Qual a relevância que você percebe em seu livro, uma vez que ele é destinado às crianças?

LS: A literatura enquanto arte é política, como considera Djalma Thurler. Minha posicionalidade, enquanto alguém que registra as brincadeiras das palavras que acontecem dentro de mim, é à esquerda, pois minha intenção é questionar a ordem social vigente. Considero relevante contribuirmos com experiências mais dissidentes. Amanaiara Miranda em sua tese de doutorado pontua sobre a geração infância ser a geração que vai perpassar todas as outras gerações, por isto é tão relevante considerarmos a infância. Desde essa geração, as crianças amalgamam saberes, afetividades sobre o mundo e a cultura. E, entre outros aspectos, é aí que está a relevância de possibilitarmos, por meio da literatura infantil, uma infância curriculante, como cita Roberto Sidinei. Ou seja, as meninas e os meninos são protagonistas de suas histórias. Uma história de sensibilidade não estática, na qual a liberdade é uma narrativa de luta. As crianças, do seu lugar de infância, intervêm e questionam o mundo, e é preciso que, de maneira leve, poética, possam refletir sobre essa complexidade da vida humana, possam viver experiências mais saudáveis com o outro, pois nos ampliamos no encontro com a diferença e com os diferentes, como diz Gatti.

A literatura é uma forma de “segredar”, de falar baixinho, de maneira bonita, para a alma das crianças aguçando sua criatividade, imaginário e fantasia, sem negar as problemáticas de nosso tempo e a multiplicidade e complexidade da existência humana, entre várias outras questões que a literatura pode despertar nas pessoas. Eu lembro de ouvir com frequência, quando participei como colaboradora voluntária no Instituto Cultural Steve Biko, do então diretor executivo Silvio Humberto, que é preciso buscar recontar as histórias sobre nós que não nos contaram. Essa necessidade de recuperar aspectos da história é possível em vários espaços, inclusive, na literatura infantil. E nossa história tem dilemas, desafios, limites, assim, como luta, beleza, força, sabedoria, glória, felicidade, e meus escritos trazem um pouco disso.

 

“As crianças, do seu lugar de infância, intervêm e questionam o mundo, e é preciso que, de maneira leve, poética, possam refletir sobre essa complexidade da vida humana”⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

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Edufba: Qual o impacto dessa obra em tempos de extremismos e casos de brutalidade geradas pelo preconceito entremeado na sociedade?

LS: “Mães de Luza” narra sobre uma menina que tem duas mães. Toda a narrativa centra-se no significado do nome “Luza”. É interessante que as crianças, quando me contam suas opiniões sobre essa literatura, falam como acharam incrível dentro do nome Luza se esconder outro nome, pois, de trás para frente, no nome “Luza”, está contido o nome “Azul”. Um relato da sobrinha de uma amiga foi fantástico. Na época do lançamento, Maria Nina, de cinco anos, após conhecer o livro, foi tentar descobrir o que tinha dentro do nome dela, e descobriu a palavra “Mar” em Maria. E esse é um dos papéis da literatura, aguçar a imaginação. A representação das experiências de famílias com duas mães, o que se estende para família com dois pais (eu tenho um sobrinho que, junto com seu companheiro, adotou uma menina), contribui com a pauta LGBTQIA+, o que é de extrema relevância.

Existem famílias formadas com a presença de duas mães por motivos diferentes do narrado no conto, mas a intenção era simplesmente retratar uma família de duas mães, na qual elas representam um casal homoafetivo. O interessante é que a escrita se estrutura e se tece normatizando essa experiência, como deve ser. A sociedade vem há séculos e séculos de patriarcado, de heteronormatividade, negligenciando e violentando as experiências de mulheres e homens homossexuais, bissexuais, transsexuais. Pessoas morreram e morrem por homofobia e transfobia, a maioria dos que mais sofrem com esse tipo de preconceito são mulheres e homens, pretas e pretos, cis e trans, sobretudo, os trans, por não se enquadrarem na imposição do projeto heteronormativo de sociedade. É preciso que todas as experiências sejam narradas, pois coexistem em um mundo extremamente homofóbico e transfóbico. Se as crianças puderem, desde a infância, aprender a respeitar o outro na sua existência, elas viverão de maneira mais saudável e teremos um futuro de relações mais saudáveis também, com possibilidades de respeitarmos o direito de ser, viver, sentir, existir e amar do outro. Direito, inclusive, constitucional.⠀⠀⠀⠀⠀⠀

 

“Se as crianças puderem, desde a infância, aprender a respeitar o outro na sua existência, elas viverão de maneira mais saudável e teremos um futuro de relações mais saudáveis também”

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Edufba: Que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?

LS: Quando fui discente da professora Narcimária Correia do Patrocínio Luz, ela me trouxe um conceito muito relevante, o da ética da coexistência. A cosmovisão ocidental nos afastou das experiências de considerar o outro, pois, de alguma forma, parte do princípio de homogeneidade humana e meritocracia, na qual hierarquiza as relações e os grupos sociais e raciais. A ética da coexistência considera que, entre outros aspectos, mesmo ocupando lugares diferentes, sendo e existindo de formas diversas, há uma equivalência da existência, muitas vezes, opositivos e conflitantes entre si. A ética da coexistência considera uma experiência coesiva e isotópica que “não apaga as diferenças nem nega a diversidade”.

Ainda citando Narcimária Luz, tive a oportunidade de refletir sobre a experiência da felicidade, ou seja, entender que, nas experiências de disputas nas quais nossos povos originais africanos, e estendo aos indígenas, sofreram e resistiram muito para que estivéssemos vivos aqui, nos foi deixada, enquanto legado, a oportunidade de vivermos a experiência da felicidade. Ou seja, é hora de sermos felizes e honrar nossa ancestralidade. É urgente partilhar, desde a infância, dessa experiência e a literatura é esse espaço político, de posicionalidade à esquerda, que narra nossas experiências de maneira leve, criativa e cheia de sororidade, solidariedade, empatia e felicidade. Às leitoras e aos leitores das minhas literaturas infantis, desejo que meus, nossos escritos possam trazer mais esperança e alegria às almas de cada menina, menino e nos corações de quem meus escritos conseguirem segredar algumas emoções, afetos, realismos, ficções e tudo que contém em nossas vidas.

Queria finalizar e em agradecimento deixar uma escrita literária que escrevi recentemente. Chama-se Escrita Negra:

Escrita negra

Esta é a carta. Nela escrevi um pouco de mim, de ti. Tem espaço para rabiscar os laços que unem você a mim. Na caixa ao lado tem canetas, lápis coloridos e lápis comum. Pode escolher qualquer um. Eu prefiro a tinta do lápis grafite, pois nem a chuva é capaz de descolorir as narrativas de si. Se faltar palavras fite meus olhos negros, sinta minha pele preta, toque nos meus cabelos, cada fio é crespo. Sinta minha alma de todos os jeitos. A caminhada dos nossos corpos desde a ancestralidade mais antiga é na minha alma trilha. Saúda seu sagrado criado a tantos passos, mas lembre-se sempre que é responsabilidade e compromisso nosso recriar com felicidade uma história que não começou com destroços, pois a sociedade, muitas vezes, parece não está nem aí. Mas no dia-a-dia cobraremos dela pois não iremos desistir. Nos contam apenas a partir dos navios Negreiros, cheios de temor e medo. Embora ali dentro daquele veleiro estivesse a força de mulheres e homens inteiros. O início se deu nas terras que por hora eu sinto saudade desde dias de outrora. Muito antes de venderem nossas cabeças, o rio Nilo já corria, as pirâmides já existiam, e na África nossos ancestrais em diversos lugares, países nasciam. Fale da dor, da fantasia, da alegria, daquelas crianças que ganharam no oceano para manter esperanças abayomis. Fale dos outros e dos nossos dias, ainda hoje tem muito racismo e gritaria. Das mães que perdem seus filhos, mas também nossos desafios por justiça e honraria. Crie a sua, a minha boneca preta, é a nossa escrita negra, pois ela é narrativa mais fiel sobre nós, aquela que grafamos, traçamos letra por letra.

Ladjane Alves Sousa, em 07 de agosto de 2021

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