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Lia Schucman

Editora da UFBA: Fale um pouco sobre sua trajetória pessoal e acadêmica.

Lia Vainer Schucman: Sou doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (2012), com estágio de Doutoramento no Centro de Novos Estudos Raciais pela Universidade da Califórnia, Santa Barbara. Publiquei, recentemente, o livro “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo” (Annablume), fruto da minha tese.  Realizei, ainda, a pesquisa de pós-doutoramento pela USP/FAPESP, sobre o tema “Famílias Inter-raciais, estudo psicossocial das hierarquias raciais em dinâmicas familiares” (2016), que resultou neste livro recém-lançado pela Editora da UFBA.

EDUFBA: O que despertou o seu interesse para as dinâmicas das famílias inter-raciais?

Lia: Este trabalho surge de uma série de inquietações que encontrei em minha trajetória como pesquisadora das relações raciais brasileiras. A pergunta que iniciou este trabalho começou a ser formulada a partir de diferentes relatos de sujeitos que, em diferentes momentos, expunham a mim os conflitos gerados pela questão da raça no interior de suas famílias. Os relatos eram de pessoas com sofrimentos intensos de racismo, com feridas profundas e traumáticas vividas no seio familiar. A partir destes relatos, surgiu o desejo de compreender como essas relações, permeadas de tanto amor, afeto e consanguinidade, poderiam também ser tão violentas e repressoras do ponto de vista racial.

Voltando um pouco no tempo: em meu doutorado, “Entre o encardido, o ‘branco’, o ‘branquíssimo’: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo”, procurei compreender como os pressupostos falsos ou imaginários sobre a raça – no sentido de que a raça, do ponto de vista biológico, não existe – passaram a ter efeitos concretos tão poderosos que passaram a regular práticas cotidianas, percepções, comportamentos e desigualdades entre diferentes grupos humanos.  O intuito era investigar como a ideia de raça e, particularmente, a ideia falaciosa de “superioridade”, construída acerca do significado de “ser branco”, foi apropriada por sujeitos considerados brancos na cidade de São Paulo.  Os resultados daquela pesquisa evidenciaram que a ideia falaciosa de superioridade moral, intelectual e estética ainda faz parte da construção destes sujeitos, construindo, então, o que foi nomeado como branquitude – identidade racial branca.

Um desdobramento possível deste doutorado seria, portanto, compreender como a branquitude é deslocada, negociada, desconstruída e, também, afirmada nas relações interpessoais entre brancos e negros. Ali, poderia estar a chave para se compreender as múltiplas relações de dominação racial na intimidade familiar e, também, como estas relações afetivas podiam ser o gatilho para processos de desidentificação, ou seja, a desconstrução do racismo em sujeitos brancos. Minha hipótese de partida foi a de que a intimidade inter-racial seria um lugar privilegiado para contribuir na compreensão qualitativa das relações raciais brasileiras.

Entendemos que a branquitude se caracteriza nas sociedades estruturadas pelo racismo como um lugar de privilégios materiais e simbólicos, construído pela ideia de “superioridade racial branca”, que foi forjada através do conceito de raça, edificado pelos homens da ciência no século XIX, delimitando, assim, fronteiras hierarquizadas entre brancos e outras construções racializadas (Britzman, 2004; Steyn, 2004; Bento, 2002; Twine, 2006; Winant, 2002; Schucman, 2012).

Assim, falar sobre famílias inter-raciais teve o intuito de entender como a estrutura social que vivemos, de um mundo hierarquizado pela e através da colonização europeia – e que nos trouxe o terrível legado do racismo e da ideia de raça como componente fundamental da colônia –, se atualiza dentro das relações mais próximas e corriqueiras, as dinâmicas familiares. O discurso de um amor “romântico”, “puro”, de laços sanguíneos, e que “a tudo supera” encobre o fato de que mesmo os laços afetivos mais nobres se formam e se mantêm no interior de um mundo hierarquizado, violento e profundamente desigual.

 

EDUFBA: O que seria o “racismo à brasileira”?

Lia: Nós podemos dizer que temos, no Brasil, uma estrutura social na qual a raça é um marcador social da desigualdade. Neste sentido, o racismo é estrutural. Sendo estrutural, ele está em todos os lugares do tecido social, inclusive na intimidade das relações.

 

EDUFBA: Qual o tipo de conflito no qual a família inter-racial está envolvida?

Lia: Todo sofrimento é psíquico, é relacional e é social, sendo estas dimensões inseparáveis da experiência humana. O racismo é um fenômeno que demanda para ser conhecido tanto a investigação de seus determinantes objetivos, no campo da História e das Ciências Sociais, quanto a compreensão de seus impactos psíquicos nos indivíduos, nas famílias e nos grupos. Por isto, este livro pensa o racismo a partir das experiências dos sujeitos envolvidos e suas famílias, sendo a família inter-racial um fenômeno singular no qual é possível ver como as potencialidades de violência racial, mas também de seu reconhecimento e enfrentamento podem ter origem no interior da própria intimidade familiar.

 

EDUFBA: Como foi o processo de composição do livro?

Lia: O livro é resultado dos depoimentos de membros de cinco famílias inter-raciais e, aqui, eu optei por escrever em cada capítulo algum elemento das dimensões intrapsíquica e interpsíquica das experiências ligadas à cor, à raça e ao racismo. Em cada um dos capítulos que seguem, podemos ver como estes elementos são dinamizados de modos singulares em cada uma das famílias, a partir das histórias de origem do pai e da mãe, das relações de amor e ódio que se estabelecem entre pais e filhos, desde a infância até as identificações que se fazem na intimidade dos vínculos.  Nesta narrativa, eu tento mostrar como o que poderia ser tomado como um elemento objetivo – a cor da pele – ganha diferentes tons no imaginário dos membros da família. O que vemos com os casos apresentados neste livro é que as dinâmicas psíquicas de afetos e identificações que constituem o mundo interno de cada um de nós, bem como os vínculos que estabelecemos em família, não podem ser desconsiderados quando se busca compreender, em cada caso singular, o modo como a cor da pele, a própria e a do outro, é sentida e significada.

 

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