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Luisa Saad

Edufba: Como foi a sua trajetória profissional e acadêmica até hoje e como surgiu o interesse em escrever sobre o tema?
 
Luisa Saad: Ainda durante a graduação em História, lá por meados de 2006 ou 2007, comecei a me interessar pela temática e pelos motivos que levaram algumas drogas a serem proibidas (e outras permitidas) e então me aproximei do movimento antiproibicionista. Junto com outros estudantes da Ufba, criamos a Rede Ananda, um coletivo de ativistas, redutores de danos e pesquisadores sobre a temática das drogas e mais especificamente da maconha. No fim da graduação, escrevi um ensaio sobre o cunho racial da criminalização da maconha e o professor da disciplina, João Reis, me incentivou a partir para o mestrado. Entre 2011 e 2013, cursei o mestrado em História Social na Ufba, vinculada à linha de pesquisa Escravidão e Invenção da Liberdade, quando pude me aprofundar mais nas questões políticas que levaram à criminalização da maconha. A essa altura, eu já militava no movimento antiproibicionista há vários anos e atuava profissionalmente com questões relacionadas à política de drogas e à redução de danos. Atualmente faço parte da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), uma rede de mulheres cisgênero e transgênero de diversos contextos (moradoras de rua e ocupações, pesquisadoras, ativistas, egressas do sistema prisional, entre outras) que militam pela mudança na política de drogas por identificar que esse é o principal mecanismo de opressão que atua sobre o tripé gênero-raça-classe.
 
Edufba: Qual o seu objetivo em “Fumo de Negro”?
 
Saad: O maior objetivo é poder compartilhar e tornar acessível a outras pessoas essa parte da história que nem todas conhecem. Muita gente ainda acredita que a maconha foi proibida porque faz mal à saúde, e a pesquisa histórica mostra justamente o contrário: além de sua proibição estar relacionada à criminalização da população negra e suas práticas, a maconha ainda possui infinitas propriedades terapêuticas conhecidas milenarmente e comprovadas cientificamente. Acho que o livro ajuda a desmistificar, de maneira embasada, o preconceito em torno da maconha, seus usos e usuários, ao passo que também estimula a reflexão sobre a proibição das outras drogas. Se a preocupação dos governos fosse realmente com a saúde da população, a primeira droga a ser proibida seria o álcool, pois é a que mais mata direta e indiretamente no mundo todo. Mas, ao contrário, somos incentivados a consumir álcool desde jovens. Quais os interesses por trás dessa seletividade? Então o convite é também para questionar esse contexto maior da política proibicionista.
 
Edufba: Em que contextos a maconha fez-se presente na história do Brasil?
 
Saad: Os arquivos históricos indicam que a maconha, planta originária da Ásia, chegou ao Brasil nos primeiros anos da invasão portuguesa, tanto como fibra nas velas e cordas das embarcações, como pelo uso que europeus e africanos escravizados já faziam da erva. Diversas pesquisas mostram que homens e mulheres feitos escravos trouxeram consigo sementes de plantas que utilizavam em sua terra natal e a maconha estava entre elas, visto que, em diversas regiões que abasteceram o tráfico de escravos, já era registrado o uso religioso, mágico e mesmo medicinal da erva. Ainda durante o período colonial, em fins do século XIX, foi instalada a Real Feitoria do Linho Cânhamo no Rio Grande do Sul, um empreendimento da Coroa Portuguesa com o objetivo de melhorar as finanças da metrópole. O empreendimento contou com um grande número de escravos que produziam cânhamo – fibra extraída da maconha – para ser utilizado em velas e cordas de navios e funcionou até 1824. Até então parece que a planta não representava nenhum problema para o país, mas, sim, uma solução.
 
Edufba: Quando as autoridades começaram o combate à erva?
 
A primeira lei brasileira proibindo a maconha surgiu ainda em 1830, por meio de uma postura da Câmara Municipal do Rio de Janeiro que penalizava o uso do “pito do pango” e definia que “escravos e mais pessoas” que usassem deveriam cumprir três dias de cadeia. Pela redação da lei, já é possível perceber que os escravos sequer eram considerados pessoas e que essa foi a primeira tentativa de controle social sobre a população negra e seu consumo da erva. A proibição definitiva só veio mais de cem anos depois, em 1932, mas, nesse intervalo, foram sendo construídos os argumentos para isso. Consultei diversas teses médicas, discursos jurídicos e arquivos jornalísticos que evidenciam o caráter higienizador do processo de criminalização da maconha.
 
Edufba: Que tipo de discursos eram utilizados para legitimar a repressão?
 
Saad: Após o fim da escravidão, foram necessários novos mecanismos de controle social sobre a população negra, então liberta. Os novos ares da República apontavam no sentido da ordem e do progresso e a medicina despontava como saber único e legítimo para cuidar das doenças e, principalmente, dos corpos doentes. Nesse contexto, os negros e sua cultura representavam um obstáculo à modernização da nação, visto que, de acordo com o racismo científico tão em voga, eram sujeitos fisicamente inferiores e moralmente degenerados. O discurso médico, dito científico, previa um cenário catastrófico caso o uso da maconha se espalhasse pelas classes mais altas, uma vez que seus usuários ficavam propensos à imoralidade, à loucura e ao crime, embora não houvesse nenhum estudo que comprovasse esses efeitos. Entre o final do século XIX e início do século XX, foi sendo preparado o terreno e a opinião pública para a proibição não só da maconha, mas de outras práticas negras como o candomblé, a capoeira e o samba de roda. A manutenção ou extinção dessas práticas seria determinante para a formação da chamada raça nacional.
 
Edufba: Quais as diferenças e semelhanças desses discursos para os utilizados hoje em dia?
 
Saad: Desde o movimento hippie e o advento da contracultura que a maconha não é mais associada às classes subalternas, visto que seu consumo se difundiu ainda mais pelas outras camadas da população. Pode-se dizer que atualmente a maconha é a substância ilícita de uso mais tolerado pela sociedade, ainda que enfrente discursos conservadores. Ao longo dos anos, o discurso e posturas racistas atrelados ao proibicionismo se voltaram para outras substâncias, como é o caso do crack, que é farmacologicamente a mesma substância da cocaína mas infinitamente mais demonizado em função de quem são seus usuários mais notórios: pessoas pobres, negras e indesejadas, os mesmos “obstáculos” de outrora. Assim, a criminalização de determinados corpos e culturas – seja a maconha, o candomblé, o samba de roda ou o funk -, fundada no racismo, vai se reinventando.
 
Edufba: O racismo e a intolerância religiosa ainda têm efeito sobre a opinião pública em relação à maconha e aos seus usuários?
 
Saad: Desde o período da escravidão que as religiões de matriz africana foram atacadas e isso se acentuou nas décadas de 1930 e 1940 durante o Estado Novo, que imprimia a essas práticas a ideia de atraso cultural a ser combatido. Terreiros e casas foram invadidos e destruídos, líderes religiosos perseguidos e batuques e festas proibidos, tudo em nome da higienização da sociedade e do espaço urbano. Um fato interessante é que a Inspetoria de Entorpecentes e Mistificações, criada em 1937, foi o setor responsável por perseguir as religiões e também reprimir o comércio e consumo de tóxicos. Nessa encruzilhada religiosa, a maconha aparece como um fator que gerava múltiplos incômodos, pois, ao apresentar propriedades terapêuticas, curativas e espirituais, desafiava  ao mesmo tempo o domínio da medicina, da indústria farmacêutica e do catolicismo. Diversas pesquisas apontam para o possível uso da maconha em cultos afro-brasileiros e é provável que sua utilização tenha sido ocultada durante o período de repressão como forma de facilitar a posterior legitimação dessas práticas religiosas.O fato é que, caso ainda seja usada em alguns cultos ou rituais específicos, não se trata de uma prática publicizada, pois isso poderia colocar em risco a comunidade religiosa ligada às religiões de matriz africana, que continuam sofrendo com o racismo religioso acentuado ainda mais nos últimos anos.
 
Edufba: Com todo o seu estudo, é possível tecer uma opinião acerca da descriminalização ou legalização da erva?
 
Saad: É difícil tecer uma opinião sobre o contexto brasileiro. De certa forma, estamos avançando no que tange à autorização para os usos medicinal e terapêutico, mas, infelizmente, ainda restrito a poucos grupos com poder aquisitivo alto e muito atrelado ao domínio da medicina e da indústria farmacêutica. Por outro lado, estamos presenciando o crescimento de um pensamento ultraconservador que retoma de forma violenta essa perspectiva de controle de alguns corpos, das liberdades individuais, da moral e dos ditos bons costumes. A verdade é que tanto a maconha quanto as demais substâncias ilícitas só são criminalizadas para determinadas parcelas da sociedade, visto que os usuários e o grande tráfico localizados nas camadas ricas não sofrem repressão, enquanto o mercado varejista e os usuários das camadas pobres são criminalizados diariamente. No jogo da guerra às drogas, a guerra fica no morro e as drogas ficam no asfalto, nas coberturas, nos helicópteros e fazendas. Uma mudança da lei sobre drogas deve versar sobre todas as substâncias e necessariamente levar em conta a reparação dos motivos e consequências da proibição. Ou então será mais uma ferramenta de manutenção do estado atual.
 
Edufba: Deixe um recado para os seus leitores e leitoras.
 
Saad: Bebam bastante água, chequem as fontes e fogo nos racistas, machistas e antiproibicionistas. Espero que tenham gostado!

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