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Maciel Henrique Silva

Para iniciar as entrevistas do Espaço do Autor de 2012, realizamos um bate-papo com o professor e historiador Maciel Henrique Silva, autor do livro Pretas de Honra: vida e trabalho de domésticas e vendedoras no Recife do século XIX, uma edição conjunta da Editora da Universidade Federal da Bahia e da Editora da Universidade Federal de Pernambuco. Apresentada ao público durante o último Lançamento Coletivo EDUFBA do ano passado, esta obra aborda o processo de urbanização e a vida cotidiana do Recife oitocentista, em particular de suas mulheres. Maciel Henrique Silva é doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e tem ampla experiência nesta área, atuando principalmente nos temas: história social e da cultura, trabalho, escravidão, mulheres e gênero.

Confira, abaixo, a entrevista!

Por Laryne Nascimento

02/01/2012

1 – Pretas de honra foi fruto da sua dissertação de Mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco. De onde veio a inspiração para pesquisar o tema desta obra? O tema surgiu, para mim, já na Iniciação Científica, nos últimos dois anos do curso de graduação em História, pela Universidade Federal de Pernambuco, quando o professor Marcus J. M. de Carvalho, especialista em história social da escravidão, me convidou para estudar o assunto “Mercado de trabalho feminino no Recife do século XIX” e me inseriu como bolsista em seus projetos apoiados pelo CNPq. Eu me apaixonei imediatamente pelo tema e coletei o máximo de documentação possível. Nos dois anos do mestrado, o suporte foi da Capes, e tive a gentil orientação da professora Suzana Cavani Rosa. Disso tudo, pode-se dizer que o livro é resultado de uma pesquisa que teve pelo menos 4 anos de duração. Mas julgo importante mencionar também que passei, dos 7 aos 15 anos, realizando o trabalho doméstico na zona rural de Pernambuco, no município de Tuparetama, sertão do Estado, como auxiliar de minha mãe, no contexto familiar. Nunca tive desprezo intelectual ou de qualquer outro tipo pelo trabalho realizado por mulheres no interior das casas. Esta experiência familiar aberta ao trabalho doméstico me marca até hoje e contribuiu para meu envolvimento franco com um tema associado à história das mulheres. Acredito firmemente que as experiências pessoais, quando bem aproveitadas e associadas às competências metodológicas da universidade, permitem a construção de um estudo sério na área de Ciências Humanas. O Pretas de Honra, mesmo sem saber, estava sendo gestado nos momentos em que lavei louça, conduzi água das barragens para casa, moí milho, assei bolo, ajudei a lavar vísceras de animais, auxiliei minha mãe a lavar a roupa da família. Percurso longo, culminando com o interesse e o suporte indispensável das editoras universitárias da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Federal de Pernambuco. 2 – Durante o processo de pesquisa, o que mais lhe surpreendeu positiva e negativamente? Positivamente, a grande quantidade de fontes. Não existe isso de falar em ausência de fontes para estudos de “história das mulheres” ou de grupos marginalizados, ou de “história colonial”, ou de qualquer tipo. O trabalho contínuo, as amizades, a paciência, o rigor analítico, faz com que a documentação apareça, não só materialmente, como qualitativamente, ao pesquisador. E isso me fez descortinar o cotidiano de mulheres trabalhadoras, pessoas fortes dentro e “fora” da escravidão, em contextos de resistência, de afetividade, de conflitos, de busca por destinos melhores. Negativamente, é até difícil falar, pois não me vi prejudicado pela limitada historiografia dedicada às mulheres trabalhadoras no país. Falo limitada na quantidade, porque a qualidade dos estudos foi algo inspirador e provocador. 3 – Como você definiria o termo “honra” que vem no título desta publicação? E “Pretas”, ao que se refere? Como todo conceito que utilizo, a honra não é um conceito construído de “fora” para “dentro” da análise histórica. Ele emergiu dos próprios documentos encontrados e das minhas próprias reflexões historiográficas. A honra, vocábulo quase sempre associado ao mundo masculino, designando força e moral, e, no caso das mulheres, associado à virgindade, pureza sexual, exigiu de mim uma ampliação do olhar: ao invés de pensar que as pessoas têm ou não honra, demonstrei que a honra é um campo de disputas políticas, e que pretas e pardas falavam em honra também para conseguir vencer embates judiciais, conseguir uma colocação em casas de família, alguma estabilidade, enfim. Se mulheres brancas, dos grupos senhoriais, eram tidas como honradas até no campo da sexualidade e do corpo, as mulheres pretas e pardas costumavam se mostrar honradas através de vocábulos como estima, lisura, fidelidade, verdade... ou seja, elas precisavam do discurso da honra para obter alguma distinção social, ainda que a marca da cor e a condição de gênero lhes fosse desfavorável. E nisso, tinham de combater preconceitos raciais e de gênero que associava a cor preta/ parda à desonra. Pensar para além destas dicotomias branco/ branca honrados, e preta/ preto desonrados foi um ganho analítico muito grande, até porque retira máscaras prontas e põe os personagens em movimentos de negociação e conflito, para usar palavras já clássicas para o campo historiográfico em que atuo. O termo “pretas” aponta tanto para um problema de ordem metodológica, quanto para uma metáfora. Não havendo apenas mulheres “pretas”, nem só escravas, mas diversas trabalhadoras pobres dedicadas à prestação de serviços domésticos e de comércio ambulante, o termo “pretas” é uma solução que aglutina em torno de si esta diversidade, tomando a parte principal (mulheres de cor preta e escravas) como o todo. Portanto, pretas é a palavra que encontrei para falar de mulheres dedicadas a trabalhos manuais no contexto da escravidão urbana. 4 – Como o espaço urbano do Recife do século XIX se relaciona e altera as práticas cotidianas dessas mulheres? Essa coisa de “cheio” e de “vazio”, de matas/ sítios aqui, de ruas com casas de pedra e cal acolá; essa coisa de casa e rua, quando pensadas na relação, na contigüidade, e não por mera oposição, traz contribuições analíticas importantes. Primeiro do que tudo são as pessoas que constroem significados para os lugares e não cabe ao pesquisador negligenciar esta capacidade das pessoas. O espaço urbano do Recife, no livro, é elemento fundamental: como as mulheres trabalhadoras usavam rios, pontes, pátios, caminhos, casas; como elas realizavam os fluxos entre a parte central da cidade e os chamados arrabaldes, tudo isso me fez perceber que elas próprias tinham percepções próprias do que era um lugar “perigoso” ou “seguro”. Tinham de ter comportamentos adequados ao mundo da rua e ao mundo da casa: ora comprar/ vender em mercados, negociando, ouvindo vozes masculinas e externando suas vozes também; ora silenciando e se mostrando recatada na casa... o que eu quis dizer com isso é que o historiador(a) tem de estar aberto às práticas cotidianas, às leituras que os personagens fazem de seu próprio mundo, inclusive dos espaços. Escravas e mulheres livres trabalhadoras andavam muito pela cidade, e não apenas para trabalhar! Dançar em maracatus, refugiar-se em casas de conhecidos, fugir da vigilância das ruas mais policiadas, rever parentes, vender pelos arrabaldes eram práticas freqüentes vivenciadas por essas mulheres. E conhecer os caminhos, os lugares, faz parte de táticas de resistência e sobrevivência que tentei demonstrar no livro. 5 – Quais os planos para 2012? Alguma nova publicação em vista? Publicar minha tese de Doutorado sobre a história das trabalhadoras domésticas de Recife e Salvador, entre os anos 1870-1910, defendida em maio de 2011; continuar a ensinar, a pesquisar. Me envolver mais com os grupos de pesquisa dos quais já faço parte e dialogar com novos grupos, com pessoas, com os sindicatos dos trabalhadores domésticos. Agir/ escrever, em suma, continuar provocando discussões e abrindo caminhos para mudanças. 6 - Deixe uma mensagem para os leitores da EDUFBA. A leitura não é uma atividade passiva. Ler é criar e inventar percursos, é brigar com o texto e seu autor(a), num gesto de inquietude intelectual e emocional. A EDUFBA tem muitos livros e autores(as) que exigem leitores(as) assim, que, na sua leitura, escrevem um outro texto. Sejam, portanto, provocativos e inventivos, até porque nem sempre temos avenidas pela frente, às vezes só temos veredas, e é por elas que o cidadão ativo tem de forçar passagem para mudar as coisas. Sou bastante grato à EDUFBA por me permitir ampliar o debate. Que as pessoas que lêem História pensem nos desafios contemporâneos dos trabalhadores e trabalhadoras. Pôr em movimento ideias e projetos, hoje, é o que deve nos interessar. Abraços e boa leitura.

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