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Marcia Paraquett e Sávio Siqueira

 

No Espaço do Autor deste mês, trazemos uma conversa com Marcia Paraquett Fernandes e Domingo Sávio Pimentel Siqueira, organizadores de "Caminhando e contando: memória da ditadura brasileira". No livro, Marcia e Sávio selecionaram histórias de diferentes pessoas que foram afetadas pelo mesmo contexto político: os 21 anos do regime militar no Brasil. Tratam-se de relatos aparentemente banais, que dificilmente são levados em conta quando se pensam nas dimensões da repressão e violência dos militares, mas que revelam o quanto esta época marcou diferentes gerações e abalou um sem número de famílias. Tanto Marcia Paraquett quanto Sávio Siqueira são professores no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ilufba).

Por João Bertonie

 

1. Conte-nos sobre sua trajetória profissional, acadêmica e pessoal. De onde surgiu o seu interesse pelas memórias da ditadura militar no Brasil?

 

Marcia Paraquett: A minha experiência como aluna universitária foi fundamental para as escolhas profissionais que fiz, embora a escola que frequentei na educação básica tenha sido decisiva em muitos aspectos. Fiz minha graduação na Universidade Federal Fluminense entre 1967 e 1970, onde também concluí meu Mestrado, tendo concluído o curso de Letras, com habilitação em Português e Espanhol. Vê-se, portanto, que estive na universidade no período mais duro da ditadura militar brasileira.

Em 1992, iniciei o Doutorado na Universidade de São Paulo, tendo defendido uma tese que falava do romance histórico, tema bastante recorrente nos anos noventa na área das literaturas. Escolhi como corpus a produção literária de um autor da Guatemala (Arturo Arias), que persegue o tema das inquietações políticas de seu país, marcado desde sempre por processos ditatoriais e domínio econômico dos Estados Unidos. Não tenho a menor dúvida de que as escolhas que fiz, não só na minha tese de doutorado, foram definidas pela memória da ditadura brasileira. Tenho alguns artigos publicados que falam dos processos autoritários, sobretudo, do Chile, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai, países com os quais mantemos sintonia política, em especial, entre as décadas de sessenta e oitenta. Como professora de espanhol de universidades públicas, desenvolvo projetos de pesquisa que aliam a aprendizagem dessa língua à formação de professores, passeando pela literatura e outras linguagens, e os temas da violência e do autoritarismo estão sempre presentes. É evidente que isso não é de graça. Os militares brasileiros, aqueles que estiveram à frente da ditadura que marcou minha juventude, são responsáveis por isso. Mas como digo no livro, o tiro saiu pela culatra, pois, em lugar de fazerem de mim uma pessoa alienada, me transformaram numa cidadã atenta ao que se passa ao meu redor. E como professora e formadora de professores, acabo tendo muitas oportunidades de afetar pessoas que não viveram aquele momento, mas que precisam saber o que acontece com uma sociedade dominada pelo autoritarismo.

 

Sávio Siqueira: Fui aluno e professor da Fundação José Carvalho, um projeto educacional pioneiro no trabalho com jovens de baixa renda e alto potencial intelectual, localizado e funcionando até hoje na minha cidade natal e em outros munícipios da Bahia. Sou formado em Letras pela UFBA, com meu doutorado defendido em 2008 junto ao antigo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Sou professor de inglês há mais de trinta anos, sendo que, destes, quase 20 na ACBEU, com experiências também de alguns anos no curso de Letras da UNIFACS. Estou na UFBA como professor em dedicação exclusiva desde 2009. Sou o atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura e estou lotado no Departamento de Letras Germânicas. Sou um homem das letras, apaixonado por livros e pela arte de ensinar. Minha relação com as memórias da última ditadura brasileira são pouco significativas, como falo no capítulo que escrevi no livro. Tenho a mesma idade do golpe e vivi tudo aquilo como menino e adolescente. Mas com o passar do tempo, ao ler e ouvir sobre os desmandos e atrocidades por ela perpetrados, passei pela devida tomada de consciência no sentido de abominar qualquer coisa que venha tê-la como algo a ser lembrado de forma positiva, ou até, pasmemos, imaginar que há brasileiros que, nos dias de hoje, a querem de volta.

 

2. Seu livro foi um dos mais procurados durante o Festival de Livros e Autores da UFBA. Por que você acha que as pessoas ainda se interessam tão fortemente pela temática da ditadura?

Marcia: No meu ponto de vista, o livro chama a atenção por duas razões: uma delas é o tema em si, ou seja, a memória da ditadura brasileira; a segunda razão seria a intertextualidade que fizemos no título, quando optamos por parodiar o verso de uma das canções mais emblemáticas da música popular brasileira. Refiro-me à canção Para não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré. Tive o privilégio de ter sido jovem no momento mais efervescente da produção musical brasileira, os anos sessenta e setenta. Acompanhei pela televisão, ou mesmo ao vivo, os famosos Festivais da Canção, onde compositores e cantores do nível de Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda, Ivan Lins e muitos outros produziam poemas cantados que falavam de nossas inquietações, valendo-se de metáforas poéticas, já que a censura estava imposta. Os militares, que pouco sabiam de metáforas, não se davam conta das mensagens subliminares, que alimentavam nossa esperança juvenil, de vermos findado aquele processo autoritário e repressivo. Nosso livro, portanto, recupera a memória da ditadura militar brasileira, mas se associa a um momento muitíssimo rico de nossa produção poética. Cada capítulo é aberto com uma canção daquele contexto, além de haver referência a outras canções em quase todos os capítulos, o que confirma que os autores fomos afetados por aquela produção. Ela marcou nossa geração. Mas eu quero crer, porque desejo que assim o seja, que a principal razão foi mesmo a relação com a ditadura. Tenho dito por aí, porque li em algum lugar, que um país que passou por um processo ditatorial precisa do dobro do tempo de duração de sua ditadura para que possa voltar à plena democracia. Fazendo as contas, precisaríamos de 42 anos, já que a ditadura brasileira durou 21 anos. Ora, se ela terminou em 1985, só poderemos falar em democracia plena partir de 2027, mas o atual cenário da política nacional, sobretudo no que se refere às infelizes manifestações de grupos sociais elitistas que estão pedindo a volta dos militares, não é promissor. Mais do que nunca é preciso falar da ditadura militar brasileira, mostrando aos jovens o que é viver com medo e monitorado. Com o advento das redes sociais, pode ficar ainda mais fácil a caça aos ‘subversivos’, palavra que ganha conotação própria nos processos ditatoriais. Um subversivo(a), por exemplo, pode ser um(a) professor(a), que leia com seus alunos o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Ou o poema-canção Cálice, de Gilberto Gil e Chico Buarque, como ocorreu comigo, quando ainda jovem era professora de uma escola religiosa em Niterói. Os jovens de hoje não sabem o que é ser cassado em suas palavras e em suas ideias. Esse foi o principal motivo que nos motivou a escrever esse livro, ainda que a inspiração tenha vindo de um jovem escritor chileno, Oscar Contardo, que o prefaciou.

 

Sávio: As pessoas ainda se interessam pela ditadura porque há ainda muita coisa para se contar. Não se manipulam e aprisionam 90 milhões de pessoas de forma incólume. Tenho certeza que, por muitos anos, as memórias desse regime nefasto ainda irão nos assombrar, em especial no tocante a histórias e narrativas de pessoas, digamos, mais comuns, como eu e tantos outros. São vidas que foram marcadas para sempre. Cada uma a seu modo, mas são traços que não se apagam. Que bom que as pessoas ainda querem saber dessas marcas, mas que todas elas, as que escrevem e as que leem possam fazê-lo de uma maneira que venha a aguçar a criticidade em cada um. Não há jamais beleza em governos que oprimem, só desastres, mazelas, feridas... sempre abertas, pulsando, reclamando por voz.

 

3. O livro apresenta relatos individuais de pessoas que sofreram danos irreparáveis no período do regime militar. Quais as histórias que mais lhe impactaram no processo de organização da obra?

 

Marcia: A proposta do livro não foi contar fatos espetaculares ou recuperar histórias das bárbaras torturas que muitos sofreram. Nenhum dos autores que compõem a coletânea sofreu tortura física e essa escolha foi proposital. Nossa ideia é dizer que a ditadura militar brasileira deixou muito mais marcas do que as noticiadas pela mídia e recuperadas pelas Comissões da Verdade que, tardiamente, se espalham pelo país. Estou dizendo com isso, que as estatísticas e a denúncia à violência física que sofreram muitos brasileiros são importantíssimas, mas elas ainda são insuficientes, pois há milhões de outras pessoas, como eu e os demais autores dessa coletânea, que não apareceríamos nesses relatos, embora também tenhamos sido marcados pelo medo e pela incerteza que feriram aquelas juventudes. Os danos sofridos por nós são irreparáveis e é por isso que não podemos nos silenciar nunca. Não levei choque e nem tive a notícia de um filho assassinado pela ditadura, mas ouvi histórias violentas que preciso contar. O fato de eu não ter sido vítima direta da violência, não me exime da responsabilidade de contar às gerações posteriores a minha, onde incluo meus filhos, meus netos e muitíssimos alunos e ex-alunos, que a liberdade é um direito de cidadania e uma construção social. Uma sociedade é livre quando é capaz de impor sua liberdade. Mas isso está associado ao direito à educação. O Brasil é um país democrático, mas com uma imensa diferença social e com um grande desequilíbrio de acesso a direitos básicos. O sentido de democracia, portanto, precisa ser revisto e redefinido.

 

Sávio: Há várias histórias interessantes. Todas causam, de alguma sorte, um impacto diferente, inclusive a minha que é contada de forma bem simplória, evocando um menino que foi salvo da alienação e do alheamento pela música e pela literatura, a primeira, na verdade, segundo o projeto original de Márcia Paraquett, o pano de fundo para toda a obra. É por isso que aparece a ideia da paródia com a música de Vandré. Há histórias muito interessantes como, por exemplo, a fuga de uma das nossas narradoras para o Paraguai, e depois para a França, a bordo de um Fusca de um traficante de drogas que ela sequer sabia quem era. Que carona pouco recomendável, não? Tem muita coisa interessante. Tem que ler para ver e crer.

 

4. As histórias apresentadas em seu livro mostram como a ditadura afetou a vida de pessoas que experimentaram aquela época. Como você acha que a ditadura ainda afeta as gerações pós-redemocratização?

 

Marcia: Olhando para o que ocorreu no cenário político brasileiro após 1985, vejo que oscilamos entre uma sensação de democracia e a ameaça de volta à ditadura. As pessoas que são jovens não podem saber o que significam essas duas sensações, pois só viveram uma delas, a da democracia, e o risco é que se encantem com a promessa do desconhecido. Tenho consciência que minhas narrativas podem nada significar, assim como sei que muitas coisas que disse a meus filhos e meus alunos foram ignoradas. As experiências juvenis são fundamentais para nosso crescimento, mas os que cresceram um pouco mais já conhecem a sensação do arrependimento. Em outras palavras, não tenho e nunca tive a pretensão de ensinar coisas a meus filhos e a meus alunos, achando que minha palavra iria definir suas escolhas. Mas me cabe contar; me cabe falar de minha experiência e deixá-los livres. Se essa geração a que você chama de “pós-redemocratização” escolher a volta do autoritarismo, vou chorar muito e sei que eles também chorarão. No momento, o que me cabe, é continuar contando e acreditando que a palavra, a minha palavra, pode ter tanto poder de persuasão como a palavra que promete um mundo no qual não acredito, porque já o vivi. A ditadura foi uma experiência muito infeliz, que me lembra, por exemplo, a dor de ter chegado numa escola às sete horas da manhã para dar minhas aulas de Português e saber que um querido colega não estaria, porque acabara de ser assassinado enquanto tirava cópias das provas de História que aplicaria àqueles alunos adolescentes que confiavam em nós. Assim como posso imaginar o que significa, hoje, para um jovem estudante ou um(a) professor(a) de escolas de bairros periféricos de nosso país, saber que um deles terá sido assassinado por grupos de extermínio. Há muito que contar. Há muito que fazer. Essa ameaça que vejo rondando nos discursos da mídia e de pessoas ignorantes ou individualistas me lembra que as histórias de violência não podem ser esquecidas.

 

Sávio: Olha, até pouco tempo, eu achava que tínhamos jogado uma certa pá de cal nesse sistema ordinário e assassino que tanto nos oprimiu por intermináveis 21 e um anos, mas depois do que eu vi nas manifestações anti-PT mais recentemente, confesso que fiquei assustado. Confesso que prefiro deixar essa pergunta assim, em suspenso, pois depois do que vi, acho que ainda temos muito o que fazer nesse sentido. A redemocratização, mesmo com todos os seus percalços, foi um caminho sem volta, mesmo estando lá uma grande quantidade de cínicos civis amigos dos generais. Essa redemocratização, na minha visão, ainda é uma menina, mas nesse Brasil que sempre nos surpreende e, definitivamente, não é para amadores ou principiantes, como diria o maestro Jobim, tudo pode acontecer. Estou ainda assustado com aquelas manifestações pró-volta da ditadura. Sei que é um grupo apenas, mas é gente brasileira que, tenho certeza, não aprendeu nada com os livros, com as histórias de tortura, de perseguição e morte. Essa gente precisa, urgentemente, revisitar a história, as suas próprias histórias e amadurecer.

 

5. Deixe uma mensagem para os leitores da Edufba.

 

Marcia: Eu diria que o maior privilégio que tenho é saber falar e escrever. E só sei falar e escrever, porque aprendi a ouvir e a ler. Só haverá democracia e direitos para todos quando nenhuma pessoa de nosso país seja dependente da palavra do outro. Ler e ouvir o que dizem os outros é fundamental para que eu possa fazer as escolhas do que preciso falar e escrever. Esse livro é apenas uma pequeníssima contribuição de aprendizagem sobre nosso país. O que ocorreu no passado não se desprende do presente e nem do futuro. O que fazemos hoje e o que faremos amanhã precisam ser aprendidos do que fizemos ontem. Isso me remete ao título de um lindo livro de Gabriel García Márquez: Vivir para contarla. García Márquez me estava dizendo que ninguém pode passar pela viva sem contar o que viveu, pois minha experiência pode ser rica para o outro. E só conta quem viveu.

Sávio: A qualquer leitor digo sempre que o livro é e sempre será um grande companheiro. Não importa em que língua, desde que a história toque nosso coração. Quem não lê não se emociona de verdade, não viaja por outros mundos, não experimenta o diferente. Ler é um bálsamo para a alma, mesmo quando esta alma anda assim meio cansada. Nunca paremos de incentivar e praticar a leitura, seja ela em qualquer suporte. 

 

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