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Paola Berenstein Jacques

Edufba: Conte um pouco sobre sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.

Paola Berenstein Jacques: Sou professora da Faculdade de Arquitetura da UFBA, onde coordeno o grupo de pesquisa Laboratório Urbano, que integra o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. O grupo   pesquisa e estuda as cidades e o urbanismo, mas sempre em interlocução com outros campos do conhecimento: artes, antropologia e história. Propomos experiências metodológicas a partir de três linhas de pesquisa articuladas entre si: Apreensão crítica da cidade contemporânea; Estética, corpo e cidade; e Historiografia e pensamento urbanístico. Nosso grupo – temos como pressuposto que a pesquisa é sempre uma produção coletiva e a própria construção de conhecimento é feita coletivamente – também edita uma revista, a Redobra, e coordena uma plataforma de ações (de extensão): Corpocidade.

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Edufba: O que fomentou a ideia de contar a história dos “deserdados” da arquitetura no livro “Fantasmas modernos: montagem de uma outra herança – volume 1”?

PJ: O livro é uma adaptação de minha tese acadêmica para promoção à Professora Titular na UFBA. Busquei construir uma outra “tradição” moderna. Montar outra herança me pareceu ser uma oportunidade para mostrar alguns dos “fantasmas modernos” da história “oficial” da arquitetura e urbanismo modernos para, assim, recolocá-los novamente para circular entre nós. O que me pareceu ser uma boa forma de atualizá-los. Uma herança, qualquer herança, é sempre uma montagem, uma construção, e essa herança que montei é apenas uma entre várias outras possíveis. A intenção era buscar desnaturalizar aquilo que herdamos e explicitar o que escolhemos herdar, o que escolhemos como nossa herança. Nesse sentido, não se trata exatamente de contar a história dos “deserdados”, mas, sim, de montar uma outra herança – também moderna, mas que adota uma postura sempre crítica –, para os que não se sentem contemplados com a história “oficial” (daí os “deserdados”) pudessem dela herdar.

Como escreveu Walter Benjamin (epígrafe da apresentação do livro): “O ‘moderno’ é tão variado como os diferentes aspectos de um mesmo caleidoscópio”. São vários “modernos”, mas muitos historiadores do nosso campo ainda insistem em uma unidade simplificadora. No lugar dos projetos modernos construídos, já mais conhecidos, em sua maioria herdeiros do mito moderno da pureza, busquei montar uma outra herança moderna, a partir de seus próprios fragmentos remanescentes, sobreviventes de um passado, de um sonho de futuro, interrompido. Uma “tradição” moderna pautada por outro tipo de racionalidade, uma “racionalidade alternativa”, como sugeria Ana Clara Torres Ribeiro, a partir de Milton Santos, baseada em uma concepção temporal não linear e assim, também, em outra concepção da história – uma outra construção historiográfica, baseada na coexistência de tempos heterogêneos –, que fez emergir o contorno de uma outra epistemologia moderna, heterodoxa.

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Edufba: De que forma foi feita a construção da montagem descrita nesse livro?

PJ: O processo de composição partiu de uma série de exercícios de montagem, que considero como uma forma de conhecimento, mas o trabalho não se configurou formalmente como tal. As montagens foram tanto o modus operandi do processo quanto um dos objetos de estudo e também o fio condutor. Fiz um exercício de escavação arqueológica em busca de vestígios, reminiscências da história, restos que sobreviveram como potência escondida, para remontá-los e, assim, criar outra narração histórica. Esses exercícios de montagem partiram de uma longa catação e tradução de citações, de ideias interrompidas, incompreendidas, parcialmente apagadas, simplificadas ou esquecidas, um recolhimento de ruínas, cacos, resíduos, farrapos, restos, em suma, fragmentos descontínuos e heterogêneos dessa outra “tradição” moderna. Trata-se, assim, de uma tentativa de atualização também de um tipo de montagem, dessa montagem como forma de conhecimento, como procedimento de criação, como forma de pensamento, de problematização e, também, de exposição de ideias por deslocamentos, disposições e recomposições, como foi praticada sobretudo no período do entreguerras por algumas vanguardas modernas do séc. XX, que buscavam sobretudo mostrar uma ‘desordem do mundo’, decorrente tanto da experiência da guerra, quanto da própria experiência cotidiana da grande cidade moderna. É desse tipo de montagem que reivindico também a herança no livro.

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Edufba: Qual a importância de uma obra como essa, que se dedica a (re)criar uma nova perspectiva sobre a história arquitetônica moderna?

PJ: Reivindicar uma herança significa também atualizá-la criticamente ou recriá-la, consiste em recompor, remontar, a partir de fragmentos heterogêneos da memória coletiva, um outro passado e, assim, reinventar também outras possibilidades de futuro. No entanto, não significa propor trocar uma herança, uma “tradição” por outra, trocar uma herança moderna por outra, ou uma narração histórica por outra, mas sim exercitar a montagem de outra possibilidade, entre outras possíveis, diferente daquela ainda tida como natural, dada, única ou hegemônica. Acho que a importância deste trabalho está aí: em mostrar outras alternativas ainda latentes. Para podermos voltar a desejar outros futuros (alguns interrompidos no passado, mas que estão ainda em latência no presente), acho que seria preciso buscar e remontar algumas “tradições escondidas”, como dizia Hannah Arendt, ou a “tradição dos oprimidos”, segundo Walter Benjamin, para poder desejar assim uma outra herança (essa ou outras), para transformar sua própria filiação e, assim, poder transmiti-la também de outra forma.

Escolhi uma outra “ancestralidade” moderna, uma herança de outra “tradição”, também moderna, mas esquecida ou apagada pela história “oficial” do movimento moderno. O campo da arquitetura e do urbanismo modernos que se tornou “oficial”, assim como a grande maioria de seus historiadores, em boa parte ligados ao movimento moderno, seguiram uma vertente moderna mais purista, formalista, funcionalista, teleológica que passou a seguir uma ideia de progresso tecnicista. Essa vertente “oficial” deixou no quase esquecimento outras vertentes, como essa “outra” vertente impura, também profundamente moderna, mas heterodoxa por ser crítica aos excessos do funcionalismo, suas simplificações, crítica ao próprio urbanismo moderno controlador, ordenador e limitador da complexidade da experiência urbana, assim como crítica à busca pela pureza formal e, também, de uma concepção de história linear, teleológica e fechada. Essa vertente moderna “oficial” é ainda hoje majoritária também no ensino – tanto da história e da teoria quanto do projeto em arquitetura e urbanismo no país –, que herda, na maior parte das vezes, ainda de forma bastante naturalizada e acrítica, essa “tradição” moderna purista como se fosse a única, desenhando assim um pensamento homogeneizado, simplificado, sem mostrar as disputas e lutas entre as diferentes vertentes e ideias.

 

Edufba: O título do livro dá a entender que esse é apenas o primeiro volume de livros. Você pretende escrever mais obras com outras montagens da herança moderna da arquitetura?

PJ: Sim, a Montagem de uma outra herança será publicada em dois volumes: Fantasmas modernos, publicado em 2020, e Pensamentos selvagens, segundo volume que já está no prelo e sairá em breve. Busquei montar duas heranças distintas, mas que estão completamente ligadas, são coimplicadas, uma outra herança do pensamento moderno em Fantasmas modernos e, em Pensamentos Selvagens, uma herança do pensamento “em estado selvagem”, como dizia Claude Lévi-Strauss, uma herança de um pensamento menos “domesticado”. Considero esses dois volumes parte de uma trilogia, que começou com o livro Elogio aos errantes, publicado em 2012, também pela Edufba, e que vai terminar agora com Pensamentos Selvagens. Os três livros buscam, de formas distintas, questionar a forma hegemônica de pensar e fazer história, sobretudo no campo do urbanismo, e tenta propor alguns caminhos alternativos, alguns desvios da história “oficial”. São exercícios metodológicos e experiências epistemológicas em torno de alguns temas que emergem de formas diferentes nos três volumes: experiência, errância, impureza, memória, narração, alteridade, cidade.

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Edufba: Deixe uma mensagem para os seus leitores e leitoras. 

PJ: Deixo uma citação do Walter Benjamin, no trabalho inacabado sobre as passagens parisienses: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os”.

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