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Rafael Afonso Gonçalves

Edufba: Conte um pouco sobre sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.

Rafael Afonso Gonçalves: Sou historiador, com mestrado e doutorado na área de História Medieval pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/Franca). O livro “Animais e homens de um Oriente distante” é, aliás, resultado da minha tese de doutorado, defendida em 2016. Atualmente, desenvolvo pesquisa de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Venho pesquisando, há mais de uma década, a relação existente entre a introspecção, exercício fundamental para a religião cristã como meio de se conectar ao divino, e a busca por um conhecimento do mundo físico, exterior ao ser humano. Para investigar melhor essa aparente contradição entre uma interiorização necessária ao cuidado com a alma e o desejo de conhecer aquilo que está ao alcance de nossos sentidos, aprofundei meus estudos em uma série de textos medievais, composta por crônicas, cartas, “livros de maravilhas” e itinerários que, por falta de expressão melhor, chamamos de relatos de viagens.

Ao mesmo tempo em que pretendem contar o que foi visto, ouvido ou presenciado, os autores desses documentos também anunciam o objetivo de contribuir para o aprimoramento espiritual de seus leitores e leitoras, aliando essas duas principais intenções de modo diverso e muito interessante. A partir desses meus primeiros estudos, publiquei artigos em revistas científicas e um livro intitulado “Cristãos nas terras do cã: as viagens dos frades mendicantes nos séculos XIII e XIV”, pela Editora Unesp, em 2013. Em “Animais e homens de um Oriente distante”, que tenho grande satisfação de publicar pela Edufba, continuo a desdobrar alguns aspectos de duplo interesse, mas colocando os animais no centro das atenções.

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Edufba: De onde surgiu o interesse em pesquisar essa relação humano-animal no período medieval?

RG: Nos relatos de viagem, que são conhecidos sobretudo por suas descrições da geografia e dos homens que viviam naquelas terras distantes, salta aos olhos o espaço reservado aos animais. É certo que outros elementos físicos também foram objeto da especulação dos viajantes medievais, como as plantas, as rochas e até mesmo os astros. Os animais, todavia, representavam para eles a primeira fronteira que separa o ser humano do resto da criação. Santo Agostinho, ainda no século IV, definiu o humano como um ser “mortal e racional”: mortal, pois não se confundia com os seres eternos, como Deus ou os anjos, e racional porque era essa qualidade que o diferenciava de todas as outras criaturas viventes. Essa hierarquização mais rígida, estabelecida entre o divino, o humano e o bestial, é fruto da sociedade cristã medieval, que vai solidificar a ideia de que toda a fauna foi criada para o benefício humano.

Segundo os homens daquela época, cabia ao ser humano, por meio da razão, desvendar qual era a finalidade, ou melhor, as finalidades incutidas por Deus nesses bichos, a fim de aproveitá-los da melhor maneira possível. Assim, podemos observar a elaboração de classificações do mundo animal, como a formulado por Isidoro de Sevilha em suas Etimologias – que terão uma longa tradição no período medieval –, em que os bichos são divididos  e identificados a partir da utilidade que eles têm para os seres humanos, entre pecus (de onde deriva, por exemplo, o termo “pecuária”), isto é, aqueles utilizados para o consumo; os jumenta, destinados a serem besta de carga e transporte, e as feras, aqueles, ao contrário, que não obedecem os homens. O que não queria dizer que esses últimos também não seriam úteis ao ser humano, pois poderiam também ser tomados como exemplo de coragem, sabedoria ou, ao contrário, como exemplo negativo de mesquinharia e ingratidão. É o que mostram os Bestiários, obras que reuniam uma grande quantidade de descrições de diversas espécies e os significados que deles se poderia extrair – e que também são examinadas no livro.

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Edufba: Em tempos de fervor religioso no contexto pesquisado no livro, qual a percepção dessa comparação e como ela interferia na sociedade da época?

RG: Um dos traços que distinguem as sociedades europeias medievais e que, a meu ver, as tornam tão interessantes de serem estudadas é a ausência de fronteiras claras que separam domínios que, para nós, são – ou achamos que deveriam ser – distintos, como a religião, a política e o conhecimento dito “científico”. No livro, a ideia foi entender como esses elementos se combinaram de modo que tornou possível a produção de um repertório rico de saberes sobre a fauna. O próprio ato de conhecer essas outras criaturas era anunciado como uma ação distintiva do homem que, por meio da razão, passa a perceber uma ordem racional e divina estabelecida na natureza. O homem, afirmavam os autores de alguns desses documentos, tornam-se mais humanos quando tomam consciência daquilo que os separa das bestas, assim como daquilo que os separa de Deus. Ao contrário das bestas, que são governadas pelos apetites do corpo, o homem deveria ser capaz de inspecionar seus pensamentos, discernindo suas vontades por meio do julgamento racional. Assim, controlar os desejos carnais, seguindo regras baseada nas virtudes e no cuidado com a alma, os afastariam de uma condição bestial, característica dos pecadores e, portanto, daqueles que merecem punição.

Definir o que era o humano e o bestial é também definir uma condição que, inclusive, ressoava dentro do aparato legal que regia a aplicação da justiça. Como defendeu Tomás de Aquino em uma passagem de sua Suma Teológica, assim como o animal deve se submeter ao ser humano, o pecador, que age como uma besta, deve se submeter ao homem racional por lhe ser inferior. Para além disso, nesses documentos podemos observar como a própria ação humana, encaradas pela perspectiva dos vícios e das virtudes, foi compreendida como promotora de alterações no comportamento dos animais, como podemos ver nas narrativas sobre a vida de alguns santos, capazes de se fazerem obedecer por leões, lobos e outros bichos normalmente ferozes ou selvagens.

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Edufba: A escolha ao pensar no Oriente como pano de fundo associa-se com o universo místico que existia sobre esse espaço?

RG: A história do desenvolvimento do cristianismo possui um traço interessante: a região onde se desenvolve com maior vigor não é a mesma em que as histórias de seu livro sagrado se passam. Isto é, se é em Roma onde se funda a sede dessa religião derivada do judaísmo, é o Oriente Médio, especialmente a Palestina, o palco dos relatos contados na Bíblia. Isso fez com que muitos dos sábios cristãos que se propuseram a comentar os escritos bíblicos discutissem as características e os significados simbólicos de animais que não eram encontrados na Europa. Animais como o leão, o camelo, o elefante e outros mencionados na Bíblia não eram desconhecidos dos leitores da Europa, mesmo que eles não fossem encontrados por lá, pelo menos não em estado selvagem.

Com a abertura das rotas para o Oriente distante, a partir de meados do século XIII, possibilitada pela expansão do império mongol, uma série de viajantes europeus entrou em contato com bichos de lugares ainda mais distantes e desconhecidos, como a China, a Índia, a Mongólia e as ilhas do sudeste asiático. O encontro com esses animais mobilizou diversos conhecimentos, não apenas para explicar o formato de seus corpos e comportamentos, mas também as finalidades para as quais as pessoas daquelas terras de lá os utilizavam. É certo que parte das descrições presentes nesses relatos de viagens – algumas tomadas do ouvir dizer, outras compiladas de obras diversas, outras a partir do que fora visto – guardam um aspecto anedótico ou fantasioso, como as menções a bichos como o unicórnio e a fênix. Mas as fontes de que se valiam, como muitas vezes eles mesmos alertaram, lhe pareceram dignas de confiança, o que fundamentou a crença na existência desses bichos. Isso não quer dizer que esses autores se furtaram a desmentir certas informações sobre animais que lhes soavam falsas ou exageradas, advertindo o leitor que se tratavam de “fábulas”.

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Edufba: Pensando em um resultado de análise antropológica, o que essa relação ilustra para o(a) leitor(a) sobre o período e as instituições do medievo?

RG: O livro pretende jogar luz sobre um aspecto que pode ser observado também em outras culturas, isto é, a relação entre os usos que fazemos dos animais e a maneira como se entende a posição ocupada pela espécie humana diante de outros seres, inclusive dos divinos. Trata-se da relação entre natureza e cultura, tema que ganha cada vez mais espaço nas discussões contemporâneas em torno das mudanças climáticas, do uso responsável de recursos naturais, dos direitos dos animais, do veganismo e ainda outras. No livro, todavia, sem pretender criar conceitos universais a partir de casos particulares, procuro entender como uma sociedade que, em um curto espaço de tempo, passou a dispor de um grande volume de informações sobre os bichos de um largo espaço geográfico associou esse conhecimento dentro de um conjunto de crenças e saberes já consolidados pela tradição livresca.

Longe de ser um assunto marginal, ou apenas um tópico de curiosidade, acredito que pensar o lugar ocupado pelos animais na sociedade medieval é um tema central para se melhor compreender como os homens daquela época pensaram a si mesmos e o mundo que os cercava, além de ser, também, um tema relevante para o debate contemporâneo. Por isso, penso que tanto o(a) leitor(a) que deseja conhecer melhor o período medieval quanto aquele(a) disposto(a) a refletir sobre a maneira como o ser humano pensou sua relação com o meio ambiente encontrarão no livro assuntos de interesse.

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Edufba: Deixe uma mensagem para os seus leitores e leitoras.

RG: Espero que os leitores e leitoras que se aventurarem por essas páginas possam encontrar no livro informações úteis para se entender melhor a dinâmica que tornou possível aos medievais manejar uma série de saberes sobre a fauna e os lugares onde habitavam. Seria também motivo de grande satisfação para mim se depararem, além disso, com um texto agradável e explicativo, em que encontre matéria para se refletir sobre a maneira como entendemos o meio ambiente e convivemos com outras espécies de animais. Ao conhecer outras formas de lidar com essas outras espécies de animais que povoam o mundo e seus desdobramentos, talvez possamos pensar nossa convivência com elas de uma maneira mais abrangente.

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