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Rodrigo Rossoni

Edufba:  É um prazer tê-lo conosco no Espaço do Autor. Conte um pouco sobre o seu percurso acadêmico e profissional e sua atual área de atuação. 

Rodrigo Rossoni: Sou formado em Jornalismo (1997) com mestrado (2004) e doutorado (2009) em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Trabalhei como repórter fotográfico entre 1997 e 2006, em jornais do Espírito Santo e na Gazeta Mercantil, jornal de edição nacional. Iniciei minha atividade como professor em faculdades de comunicação, em 2003, no Espírito Santo. Em 2011, prestei concurso e vim ser professor efetivo da Facom/UFBA.

 

Edufba: Por que o título  “Olhares Comprometidos”?

RR: O livro aborda três momentos distintos da relação entre mim e as crianças do Movimento Sem Terra. Em 1997, elas foram abordadas sob um olhar estrangeiro, carregado de ideologias. No mesmo período, eram alvos de olhares também invasivos da imprensa. Em 2003, com as oficinas, puderam expressar o seu olhar de dentro da sua cultura e identidade. Este olhar estava muito marcado pelas ações discursivas do MST. Em 2017, com os smartphones, empreendiam novas formas de visualidades influenciados pelas novas subjetividades das redes. Nesse processo, a forma de ver o mundo está muito relacionada às formas de pensamento sobre o mundo. Então, como nos diz Merleau-Ponty, o olhar é um pensamento condicionado, os nossos olhares são sempre comprometidos pela cultura, as ideologias e as experiências que vivemos. Ao mesmo tempo, o livro traz uma perspectiva de olhares do MST como olhares de promessa, de comprometimento com o mundo e sua história.

 

Edufba: As fotografias que você traz no livro são fruto de duas décadas de trabalho com crianças e jovens do Movimento Sem Terra. O que motivou sua escolha por abordar esse movimento em 1997, no seu início de carreira, e o que o motivou a revisitá-lo em 2003 e 2017?

RR: Em 1997, decidimos fazer o TCC sobre a exploração do trabalho infantil e a situação da infância no MST. A ideia era investigar e produzir reportagens sobre a infância excluída dos direitos básicos e constitucionais. Nosso intuito era contribuir para que o poder público atuasse nessas causas e, com o nosso trabalho, transformar aquelas realidades.

Foi nesse momento que tive o primeiro contato com o acampamento Piranema. Produzi uma série de fotografias das crianças dali. Depois do trabalho pronto, organizei as exposições fotográficas.

As exposições demonstraram que o pensamento da transformação era muito ingênuo. O fator determinante para isso foi que a repercussão ficou limitada aos cumprimentos ao fotógrafo. Para a vida das crianças, foi indiferente. Ao mesmo tempo, compreendi que minhas imagens eram muito deterministas, seletivas e focadas em explorar os signos do sofrimento. Um típico olhar colonizador.

Com isso, decidi retornar, em 2003, para reencontrar as mesmas crianças de 1997 e fazer uma oficina de fotografia para que elas mesmas empreendessem o seu olhar sobre o mundo. Como seria muito difícil encontrar as crianças trabalhadoras em carvoaria e canaviais, a opção pelo MST pareceu mais coerente e possível, já que elas estavam num território de fácil localização, ao mesmo tempo em que, já havia um histórico de visualidades negativas da imprensa sobre elas. Mais um olhar colonizador que retira do outro as potencialidades afetivas e produtivas.

Com as oficinas, elas produziram um belo material visual sobre a comunidade, além de fazerem um enfrentamento em relação à imagem construída pela imprensa e por mim mesmo em 1997. Um olhar de dentro da cultura, de quem experiencia no seu cotidiano as relações de afeto, de força e de resistência.

Em 2017, a ideia era retornar para compreender como as tecnologias digitais promoveram novas formas de visibilidade a partir do uso dos smartphones e redes sociais. No livro, portanto, faço um cruzamento das fotografias dos três momentos para uma análise da fotografia e identidade. Nesse cruzamento então, temos uma nova perspectiva visual produzida nessa trajetória de vinte anos. De um olhar invasivo para um olhar genuíno, livre das amarras estereotipadas de quem os via de fora, e com os smartphones, novas formas de ampliar as potencialidades da sua imagem, desprendendo-se ainda mais da visão estigmatizada de quem ainda vê o MST como lugar de pessoas desumanizadas com instinto raivoso e ímpeto usurpador.

 

Edufba: Na seção “De fotografadas à fotógrafas”, você descreve sua segunda visita ao acampamento do MST e a oficina de pinhole que realizou com as crianças. Pensando na questão central, ser constituído pelo olhar do “outro” versus produzir sua própria visibilidade, quais os aspectos e qualidades notáveis que diferenciam as fotografias feitas pelas crianças das feitas por você durante sua primeira visita?

RR: São extremamente antagônicas ética e esteticamente. As crianças partem do seu mundo vivido, das referências da terra, dos afetos e do cotidiano que, para elas, sustentam todo o seu empreendimento de sentido de vida. Como citei anteriormente, são imagens com uma potência visual e subjetiva transformadora. Empreendem novas formas de percepção e de recepção. Ali estão instaurados regimes de visualidades que alimentam, dessa forma, um imaginário de família, de afetos, de gente que sonha e constrói o seu futuro como cidadãos brasileiros. É uma imagem que os coloca numa condição de humanidade, se considerarmos os aspectos apresentados nas minhas imagens, por exemplo. É esse grau de humanidade e de afetividade que tornam as imagens um diferencial da produção. E isso só é possível porque foram feitas, idealizadas e sentidas por elas mesmas. São imagens de enfrentamento no território das lutas sociais.

As minhas fotos, por outro lado, tinham forte apelo dramático. Eram preconceituosas, seletivas e movidas por olhar de fora do contexto, um típico olhar colonizador. Um olhar que não levou em consideração os afetos, as vibrações e os elementos que moviam aquelas vidas. Um olhar que ficou restrito às problemáticas estruturais. As minhas fotos seguiam um estereótipo há muito impregnado pela imprensa e pela sedução editorial.

 

Edufba: As imagens das três visitas, lado a lado, formam uma espécie de linha do tempo, não só da vida daquelas crianças de 1997, hoje adultas, mas também dos diferentes momentos e anseios da fotografia enquanto campo formal de lá para cá. Poderia comentar a transformação desses anseios?

RR: Em 1997, ainda era forte o discurso da fotografia documental como meio de transformação da realidade. Essa ideia do fotógrafo de compromisso social explorou muito a dor e o sofrimento do outro como conteúdo. Eu segui esse fluxo. Em 2003, havia uma forte discussão sobre protagonismo juvenil, para que as pessoas passassem da condição passiva para sujeitos da história. Ali entra uma perspectiva pedagógica de formação e empoderamento da produção genuína. Em 2017, a fotografia já tinha passado por muitas transformações tanto em termos técnicos quanto teóricos. As tecnologias digitais e as redes sociais mudaram radicalmente as relações com a imagem e da imagem com os seus produtores.

Então os dispositivos imagéticos acabam respondendo aos anseios dos sujeitos contemporâneos, que querem expressar suas intimidades, seus imaginários e as ficções de si mesmos. É uma forma de lidar muitas vezes com o próprio mal-estar do mundo contemporâneo. Uma via ou uma linha de fuga. A pesquisa então acompanha as transformações do mundo e também do campo fotográfico. Está diretamente ligada a essas mudanças e, principalmente, às mudanças nas vidas das famílias do MST. Um percurso de vitórias não só estruturais (casa, escola, terra), mas de dignidade e de autoestima. A potência dos dispositivos imagéticos contemporâneos para que essas pessoas expressem sua visão de mundo é um fator relevante do contexto da fotografia digital.

 

Edufba: No início do livro, você traz uma citação do filósofo alemão Walter Benjamin: “ É a transmissão, é o compartilhar, que transforma a vivência em experiência”. Qual a importância dessa noção de narrativa compartilhável para pensar a forma como produzimos imagens do mundo e de nós mesmos hoje?

RR: A citação de Benjamin está diretamente relacionada com minha história pessoal. Era preciso compartilhar toda aquela minha vivência. É esse compartilhar que agrega toda a experiência vivida. Atualmente, a fotografia ganhou novas dimensões de uso e circulação. A produção muitas vezes é descartável, mas diz muito do nosso novo mundo. Mas, o importante é que está acessível a todos. Os grupos mais diversos da sociedade podem narrar a sua própria trajetória, expor suas realidades, desejos e pontos de vista. Esse diálogo e novas formas de sociabilidade com o mundo tornam a vivência a partir das práticas imagéticas em experiência. O mundo de hoje está aberto para que as subjetividades estejam evidenciadas e os nossos desejos estimulados. A experiência da imagem no contemporâneo diz muito sobre nós mesmos. Eu vejo isso como uma importância ética, estética e política. Tornar-se sujeito da sua própria história imagética. Expor seus corpos como meios de comunicação com o mundo.

 

Edufba:  Que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?

RR: Que os leitores e leitoras sejam muitas (risos). Brincadeiras à parte, gostaria que apreciassem a história. Que o livro possa estimular reflexões e pensamentos para o conhecimento de cada um, principalmente quando se trata de cidadãos brasileiros de movimentos sociais, tão discriminados e despotencializados pelos discursos oficiais. Enfim, que o livro contribua para a ampliação do olhar e do pensamento sobre o nosso próprio mundo. Que compreendam que essa trajetória de vinte anos demonstra as transformações estruturais e também subjetivas de cada um do assentamento do MST. Deixo uma sugestão: fiquem atentos ao que as imagens nos dizem. Elas são importantíssimas na narrativa dos vinte anos.

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