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Urpi Montoya Uriarte

Edufba: Conte um pouco sobre sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.

Urpi Montoya Uriarte: Esta é uma solicitação e tanta! São muitas coisas que poderia falar, mas vou me ater ao que me parece mais importante. Sou antropóloga, formada na Universidad Mayor de San Marcos (Lima, Peru). Como sempre tive uma vocação para tentar entender os fenômenos sociais de forma processual, decidi fazer o doutorado em História na Universidade de São Paulo (USP). Isso, nos idos dos anos 1990. Desde aquela época, meus trabalhos têm tido esses dois olhares, o da Antropologia e o da História. O tema? Têm sido sempre a cidade, a produção da vida urbana, os agentes ordinários que fazem a cidade. Na verdade, trato apenas de uma parte da cidade, que é a que mais me fascina – o centro. Os centros tudo concentram e por isso são espaços particularmente ricos em relações, em tempos, em agentes, em histórias e trajetos.

Eu sou apaixonada pelo centro de Salvador. Desde os meus 14 anos, quando li Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado. Fiquei maravilhada por esse centro histórico com suas ladeiras, casarões, tradições, personagens e vidas cheias de complexidade, sofrimento e alegria, dureza e leveza; pelos tempos e as forças diversas que se sobrepunham nesse espaço. Desde que cheguei em São Paulo, eu sabia que, ao concluir o doutorado, meu destino seria Salvador. Assim, fiz um projeto e ganhei uma bolsa de professora visitante do Departamento de Antropologia. Aqui conheci meu marido, o historiador Iran Costa, casei, tive dois filhos e fiquei. Me considero peruana e baiana.

Com que métodos costumo pesquisar? Como antropóloga, a resposta não poderia deixar de ser: com a etnografia.  É ela que me circunscreve a pequenos espaços, áreas menores, e a um conjunto limitado de interlocutores, com os quais estabeleço uma relação de proximidade, frequentação constante, exercício disciplinado de escuta e conversa informal. Outro método sempre presente em minhas pesquisas é o histórico: o tempo, para mim, é um agente fundamental, pois as camadas de temporalidades que se superpõem, acomodam ou entram em choque – seja na forma de memórias ou de tempo materializado no espaço construído – dão um sentido específico à produção do espaço.

No que diz respeito à vida profissional, sou professora. Adoro sala de aula, os corredores de São Lázaro e o bar de Silvinha (no largo da Igreja de São Lázaro), onde alunos e alguns professores costumam prolongar as discussões acadêmicas e outras igualmente importantes.  Ai que saudade disso tudo nestes tempos de Covid! As aulas, para mim, são espaço de aprendizagem, de diálogo, de reflexão, mas também de respeito mútuo, amizades e risadas. Além de professora, sou pesquisadora. Inventando sempre problemas a serem pesquisados, desde que sejam socialmente relevantes. E, mais recentemente, sou extensionista, faço extensão através desse espaço fantástico que a UFBA tem e que se chama Atividade Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS). A oferta da ACCS “O habitar em casarões ocupados do centro de Salvador”, que ministro desde 2018, tem me aberto uma nova forma de atuação e de fazer pesquisa: junto com os moradores, sejam eles de prédios ocupados (Movimento Sem Teto da Bahia/MSTB), com as mulheres da Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico (AMACH) ou com os moradores da Preguiça articulados no Centro Cultural “Que ladeira é essa?”. Essa ACCS tem me permitido descobrir como a extensão e a pesquisa podem se enriquecer mutuamente: a extensão, ao mesmo tempo em que gera ferramentas de luta para os moradores, fornece um outro tipo de perguntas para a pesquisa, que não saem mais da teoria ou da cabeça do pesquisador, mas da experiência de trabalhar junto! Por fim, não posso deixar de dizer aqui que a ACCS me permitiu formar um grupo maravilhoso de alunos e alunas (Natália Barreto de Direito, Luísa Caria do BI de Artes, Marina Novaes de Arquitetura e Urbanismo, Artur Purdente de Artes e outros vários colaboradores) que têm dado vida à linha extensionista do grupo de pesquisa Panoramas Urbanos (que coordeno). Recentemente, publicamos os resultados dos nossos trabalhos no site https://www.panoramasurbanos.com.br/, que está simplesmente incrível!

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Edufba: A escolha do título “Entra em beco, sai em beco” tem relação com a música “Madalena”, de Gilberto Gil, e o contexto da mesma?

UU: Sim e não. A letra da música Madalena fala da alternância de épocas ruins e boas, própria de homens e mulheres que vivem da pequena agricultura, de suas roças. Na música, essas pessoas entram e saem de becos, figurativamente. Em meu livro, falo de homens e mulheres do centro da cidade de Salvador, que vivem literalmente entrando e saindo de becos: mudando de casa, em função do aluguel que podem pagar, em função do crescimento da família, em função da proximidade da casa dos parentes (principalmente da mãe). Essas casas encontram-se geralmente em “avenidas”, nome que aqui se dá às fileiras de diminutas casas, umas em frente às outras, com um corredor no meio, que forma um beco. Ao longo do século XX, várias gerações de uma mesma família ficaram entrando em becos e saindo de beco até poderem comprar uma casa e se estabilizar. Muitas vezes, esses becos são vizinhos uns dos outros ou se localizam em ruas próximas; mesmo quando não são próximos, eles estão todos no centro da cidade.

Esses movimentos formados pela trajetória residencial se sobrepõem a outros movimentos que reforçam o entrar e sair de becos. São que se comunicam nas escadas do beco ou nas portas e janelas de suas casas. São parentes que moram em becos próximos que se visitam diariamente. São colegas ou amigos que dão recados ou se ajudam entre si, indo de um beco a outro. Daí a afirmação que, no centro de Salvador, habita-se em movimento: entrando e saindo de casas, de ruas, de becos.

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Edufba: De onde surgiu a ideia de fazer a pesquisa comparativa entre Salvador e Lisboa?

UU: Inicialmente, eu tinha uma hipótese. O tipo de habitação poderia promover uma forma específica de habitar. Assim, habitar-se-ia de formas semelhantes em becos localizados em lugares distintos. A meu ver, a forma poderia ser também conteúdo, a forma poderia formar. Decidi testar esta hipótese analisando comparativamente becos de Salvador e Lisboa.

No centro da capital portuguesa, analisei o que eles chamam de “pátio”, que é uma espécie de beco. Não tem a forma linear de um corredor com casas ao redor que, em Salvador, se explica pelo formato dos terrenos no centro (de testada pequena e grande profundidade). É, ao contrário, um pequeno pátio, geralmente quadrado, ao redor do qual se erguem casas. No que diz respeito ao tamanho das casas, à precariedade, ao período de sua construção, aos agentes produtores, é tudo igual. Aqui e lá, são pequenas e precárias casas construídas a partir da segunda metade do século XIX, em terrenos que sobravam numa casa preexistente, com o fim de serem alugadas à classe trabalhadora que, seja pelo fim da escravidão ou pela industrialização, começaram a demandar locais de moradia.

O interessante é que minha hipótese se mostrou equivocada. A vida social, as relações entre vizinhos, a produção da vizinhança e os usos do espaço comum de becos e “pátio” são completamente diferentes, apesar do tipo de habitação ser semelhante, dos moradores serem, em ambos os casos, da classe trabalhadora, e os lugares partilharem o mesmo estigma (periculosidade, violência).

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Edufba: Qual o propósito ao fazer um comparativo entre a primeira capital do Brasil e a capital portuguesa para refletir sobre a etnografia e a história urbana dessas cidades?

UU: Escolhi Lisboa pelas muitas semelhanças com Salvador. Essa cidade foi claramente o modelo para a forma como Salvador cresceu a partir do pequeno quadrilátero de Tomé de Souza. No que resta da Lisboa antiga, no bairro de Alfama, por exemplo, as ruas estreitas, tortuosas, e o os becos, são prova dessa semelhança. A divisão em cidade baixa e cidade alta é outra prova. Pensei que essas semelhanças poderiam me levar a formas de habitar parecidas (o que acabou não se comprovando). Por outro lado, em Lisboa estava Graça Cordeiro Índias, uma antropóloga com a qual tinha e tenho muitas afinidades de temas e métodos, razão pela qual a escolhi para ser a supervisora de meu estágio de pós-doutorado, período no qual se desenvolveu a parte lisboeta da pesquisa da qual resultou o livro Entra em beco, sai em beco.  Foi no livro dela (Um lugar na cidade, 1997) que vi a primeira e definitiva referência ao Pátio do Broas, no bairro da Bica, onde fiz meu trabalho de campo.

A história urbana do centro de Lisboa e Salvador tem, até meados do século XX, muitos aspectos em comum. A migração de finais do século XIX que fez a cidade crescer, o caráter artesanal da mão-de-obra da população que habitava o centro, as relações de parentesco entre vizinhos, a rivalidade das micro-áreas, são algumas destas semelhanças. No entanto, na Lisboa de finais do século XX há uma inflexão nesta história de semelhanças. Enquanto que, no centro de Salvador, muitos moradores conseguiram comprar as pequenas casas dos becos, fazendo melhorias nelas e se verticalizando para as novas gerações permanecerem no bairro, no centro de Lisboa, nos poucos pátios que restam, as pequenas casas continuam nas mãos de seus antigos donos que, sem investir muito nelas, as alugam a uma porção importante de estrangeiros – indianos, mexicanos, russos, angolanos ou cabo-verdianos – que vieram atraídos pelo boom do turismo na capital portuguesa.

Fazer etnografia num espaço assim foi muito difícil. Não consegui morar no Pátio do Broas, um espaço muito disputado dentre os trabalhadores dos muitos restaurantes por perto, nem nas proximidades pelo alto valor do aluguel na nova Bica gentrificada. Então, ia todo dia ao pátio e essa minha presença, embora tolerada, não era muito bem vista. Ficava horas sentada no pátio, sozinha, pois os moradores entram e saem de suas casas, não ficam no pátio. Felizmente, consegui fazer amizade com uns mexicanos que me ajudaram a observar o pátio a partir outros ângulos: como convidada na porta da casa deles ou desde sua pequena janela. Pude observar que, no Pátio do Broas, as pessoas entram e saem, mas sem se relacionar, sem trocar conversas. Pelas portas e janelas fechadas não entram nem saem sons, cheiros ou vozes. Por isso, denominei o capítulo sobre esse espaço de “O habitar sem vizinhos”.

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Edufba: Como a obra influencia o leitor a repensar a importância sociocultural de espaços como centros históricos?

UU: Acho que, para o grande público, o livro ajuda a desfazer muitas imagens negativas ou superficiais do centro. Primeiro, mostra que o centro é habitado. Que por trás das lojas de roupa e móveis da Baixa dos Sapateiros (Salvador) ou das lojas de souvenirs da Rua das Escadinhas da Bica (Lisboa) há casas e gente morando. Os centros, por mais espetacularizados que sejam, são vivos. Segundo, mostra que os becos são adentráveis, são espaços de moradia de pessoas que trabalham, e não apenas rotas de fuga ou espaços da ilegalidade e violência. Há drogas, sim, como em quaisquer outros bairros de quaisquer outras cidades do mundo. Terceiro, demonstra que habitação é uma coisa e forma de habitar é outra. As casas dos setores populares podem ser parecidas, mas a forma dos elementos vivos (humanos e não humanos) se relacionarem entre si, com e no espaço, são diversas, frutos de concepções culturais variadas (do que se entende por casa, principalmente), condições jurídicas diferenciadas (proprietários ou inquilinos) e características particulares do mercado de trabalho (formalidade e informalidade, salário mínimo etc.).

Assim, encontramos formas de habitar diferentes em casarões ocupados do centro, em becos e em comunidades que hoje só existem nas memórias de seus moradores (me refiro aqui ao antigo Maciel), formas que chamo de “habitar a vizinhança”, “habitar sem vizinhos”, “habitar comunitário”, “habitar coagido” e “habitar com dignidade”. Por fim, o livro prova que o centro de Salvador é um espaço muito particular, no qual as pessoas habitam suas casas, seus becos, suas ruas e toda uma extensa área. Habitam-na porque andam, caminham, por toda a sua extensão. E caminhar diariamente é conhecer, é estabelecer e manter relações com os lugares e as pessoas que os compõem. Para seus habitantes, o centro como um todo é um espaço familiar.

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UU: Leiam o livro e se permitam ter outra experiência e visão do centro!

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