Ângela Maria Freire de Lima e Souza
O Espaço do Autor da Editora da Universidade Federal da Bahia termina o mês de Março com um bate-papo com Ângela Maria Freire de Lima e Souza, co-organizadora do livro "Gênero, mulheres e feminismos". A obra é uma coletânea de textos realizada em parceria com o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), e explora a diversidade temática e metodológica dos estudos feministas. Ângela Maria Freire é graduada em Ciências Biológicas pela UFBA, possui mestrado em Botânica e doutorado em Educação, também pela UFBA. É pesquisadora permanente do NEIM e docente do PPGNEIM, e possui experiência nas áreas de gênero, educação e ciências biológicas.
Tarsila Carvalho
1) Conte-nos um pouco de sua trajetória profissional. Como surgiram os diversos interesses de sua formação acadêmica? Minha formação inicial é em Biologia. Fiz o Curso de Ciências Biológicas na UFBA entre 1974 e 1977. Em março de 1979 ingressei como docente no Instituto de Biologia e no mesmo mês iniciei o Mestrado em Botânica, na mesma instituição. Nos anos seguintes cursei o mestrado, enquanto nasceram dois dos meus três filhos. O terceiro chegou em 1985. Esta referência à vida pessoal se justifica pelo fato de que, talvez, as obrigações familiares e especialmente a maternidade possam explicar o grande hiato entre o mestrado e o doutorado, que só iniciei no ano de 2000. Não era fácil para as mulheres à época – e nem é nos dias atuais – conciliar a vida familiar e a carreira acadêmica. Escolhi o doutorado em Educação, que tinha tudo a ver com o meu grande interesse pelo ensino da Biologia, dada a importância desta ciência em função do seu espetacular avanço na segunda metade do século XX e de suas implicações cada vez mais decisivas na vida das pessoas; simultaneamente, minhas próprias reflexões sobre a vida profissional em articulação com minhas funções no mundo privado me aproximaram dos Estudos de Gênero, razão pela qual comecei a estudar disciplinas ofertadas em programas de pós-graduação na Faculdade de Filosofia, a cargo das professoras Ana Alice Costa e Cecília Sardenberg. Finalmente, associando minhas observações sobre a Biologia em seus aspectos operacionais e epistemológicos, o modelo hegemônico na produção do conhecimento ainda vigente no mundo contemporâneo e os interesses das mulheres, não apenas como objeto da ciência, mas principalmente como sujeito cognoscente implicado politicamente, iniciei uma nova etapa na minha carreira, hoje dedicada aos estudos feministas no campo das ciências naturais, em particular na Biologia. 2) Comente sobre a conjuntura atual das pautas feministas no Brasil. Caminhamos ao longo da história como um movimento em permanente construção, mas sempre nos caracterizando pelo questionamento sobre o papel das mulheres na sociedade e atuando para ampliar os seus direitos. Não é fácil eleger as pautas mais relevantes, entre tantas questões que os feminismos trazem à luz, mas há alguns pontos sobre os quais todas concordamos. Esses pontos foram muito bem colocados no último dia 08 de março, Dia Internacional da Mulher; as feministas brasileiras saíram às ruas em diversas manifestações reivindicando principalmente a legalização do aborto, o Estado laico, a equidade salarial entre homens e mulheres e o fim da violência contra as mulheres. As duas primeiras reivindicações enfrentam hoje no Brasil uma situação muito adversa, uma vez que estamos vendo crescer de modo assustador o conservadorismo no Congresso Nacional, em que ganha força uma bancada fundamentalista que ameaça a consolidação de avanços propostos por parlamentares afinados com o pensamento feminista. Soma-se a isto o papel conservador de grande parte da mídia, também submetida a este fundamentalismo, além da velha cultura patriarcal, racista e sexista. A equidade salarial, por sua vez, está longe de ser alcançada no Brasil. Uma pesquisa do IBGE divulgada em novembro de 2013 mostrou que quanto mais elevado o grau de escolaridade das mulheres no mercado de trabalho, maior a diferença salarial em relação aos homens. Considerando dados levantados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD, em 2012, o estudo mostra que em 2002, o rendimento das mulheres era equivalente a 70% do rendimento dos homens. Em 2012, a relação passou para 73%. No grupo com 12 anos ou mais de estudo, o rendimento feminino cai para 66% da renda masculina. Há ainda outras questões: precisamos ampliar a participação das mulheres na política, visto que elas são 52% da população, mas menos de 10% no Congresso Nacional; em relação à violência contra as mulheres, a Marcha das Vadias reafirma que quem ama não mata, mas também grita nas ruas: “se ser livre é ser vadia, então somos todas vadias”; as mulheres ainda são assassinadas porque não quiseram continuar um relacionamento afetivo. Há muito que fazer, há muito por que lutar. 3) Como está o campo atual das pesquisas biológicas em relação às temáticas de gênero e aos interesses das mulheres? A rigor, os estudos de gênero e suas críticas aos procedimentos investigativos e até mesmo às próprias escolhas dos objetos de estudo não são considerados e incorporados às práticas científicas. E não são desprezíveis os problemas que advém desta falta de articulação entre estudos de gênero e ciência. Por exemplo, um estudo divulgado na Science de 26 de março de 2010¹ mostrou que a maioria dos estudos realizados no âmbito das Ciências Biomédicas utiliza cobaias machos, porque são mais baratas e não apresentam as oscilações fisiológicas associadas aos ciclos ovarianos de cobaias fêmeas. Dizem as autoras: “Cobaias fêmeas têm um ciclo ovariano de 4 dias, assim é preciso analisar esfregaços vaginais diários em experimentos onde hormônios podem desempenhar um papel. Caso contrário, os dados são difíceis de interpretar,” Os cientistas também precisam manter quatro vezes o número de animais fêmeas que machos para certificar-se de seus resultados. E mesmo com essas precauções, o ciclo ainda pode levar a resultados menos-claros que são mais difíceis de publicar. É óbvia uma consequência deste viés: drogas são testadas em animais machos e depois são usadas por homens e mulheres indistintamente... Entre 1997 e 2000, por exemplo, dez drogas foram retiradas do mercado dos EUA por causa de seus efeitos indesejáveis. Oito delas causaram "maiores riscos de saúde para as mulheres do que para os homens." (SCHIEBINGER, 2014) Recentemente, uma das nossas mais importantes teóricas, Londa Schiebinger, professora de História da Ciência na Universidade de Stanford e uma autoridade internacional na temática de Gênero & Ciência escreveu um belo artigo sobre agnotologia que, segundo ela, “retraça a política cultural da ignorância.”. Neste artigo ela discute o modo pelo qual o viés androcêntrico de sexo e gênero característico da ciência pode produzir ignorância, afetando tanto a criatividade quanto a própria qualidade dos produtos científicos. Outras autoras como Anne Fausto-Sterling e Cordelia Fine também nos mostram os efeitos negativos desta ignorância de gênero nas Ciências Biológicas e Biomédicas; Fine aponta diversos estudos sobre diferenças entre os sexos realizados por neurocientistas que ignoram a enorme influência da cultura sobre nossas habilidades cognitivas e atribuem a razões estritamente biológicas as diferenças nessas habilidades encontradas entre homens e mulheres. Fausto-Sterling se dedica a apontar que não é possível explicar a definição de gênero a partir de sua simplificação, usando marcadores estritamente biológicos. Acredito, como Schiebinger, que as pesquisas podem apresentar resultados muito mais confiáveis se forem adotados certos métodos que usam gênero como categoria de produção de conhecimento, vencendo esta ignorância produzida pelo viés de sexo e gênero. 4) Em seu artigo na obra “Gênero, mulheres e feminismos”, a senhora observa uma luta significativa pela legitimidade das mulheres no ambiente de trabalho, que parece mais dura no campo das Ciências Naturais. Quais são as dificuldades encontradas e de que forma a legitimação da mulher na ciência contribui para a modificação das relações de poder no meio científico e na sociedade? Esta é uma discriminação sutil, que não se manifesta abertamente; nós não ouvimos explicitamente que estamos “no lugar errado”. Daí tantas mulheres, inclusive algumas por mim entrevistadas, dizerem que jamais foram discriminadas e que nós, as feministas, estamos equivocadas... Na nossa percepção, faltam-lhes as lentes de gênero. Somos muito numerosas, por exemplo, na Biologia. A questão não é exclusivamente numérica, mas muitos estudos quantitativos realizados no Brasil, baseados nos dados do CNPq, confirmam o que eu disse no artigo citado: à mediada que avançamos para o topo da carreira começamos a perder espaço para os homens. O que ocorre é que a própria estrutura do mundo científico, especialmente nas Ciências Naturais, nos dificulta a carreira. Progredir na carreira segundo critérios que envolvem intensa produção de artigos, longas jornadas nos laboratórios, frequência em eventos científicos nacionais e internacionais, disponibilidade de tempo para afastamento em longos períodos, entre outras exigências, é muito mais difícil para as mulheres, porque delas é exigida uma participação mais intensa na vida da família, especialmente dos filhos. Então a dificuldade não é criada exclusivamente pelas regras do mundo científico, mas ele reproduz as “normas de gênero” consagradas socialmente. Há outras dificuldades muito importantes também: a) estereótipos de gênero que atribuem à “natureza” masculina a racionalidade, a objetividade, a habilidade com números e a abstração; em contraposição, as mulheres seriam emotivas e instáveis em sua subjetividade, características não tão desejáveis no mundo científico; b) a autoridade e a autonomia são atributos tradicionalmente associados aos homens, de modo que muitas mulheres cientistas relatam que tiveram dificuldades para exercer autoridade e para conquistar autonomia entre seus pares homens; c) No Brasil ainda é insipiente a produção de políticas públicas para as mulheres cientistas. Felizmente, graças às nossas lutas e reivindicações sistemáticas junto aos órgãos competentes, já contamos com algumas ações governamentais, como a licença maternidade para bolsistas de doutorado, pos-doc e produtividade em pesquisa, o Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero e o Edital Meninas e Jovens Fazendo Ciências Exatas, Engenharias e Computação da parceria CNPq/SPM/Petrobras. Essas políticas podem, a médio e longo prazos, contribuir para a redução das assimetrias de gênero que observamos no meio científico. Certamente as relações de poder neste ambiente tendem a se equilibrar, com a presença e a contribuição cada vez maior de mulheres, que já agregam à produção do conhecimento algumas peculiaridades aprendidas no universo feminino, como a cooperação, a capacidade multitarefa, a comunicação mais fluente e criativa. 5) Esta mesma obra contém textos de pesquisadoras integrantes do NEIM/UFBA. Durante o processo de produção, como esse conhecimento relaciona-se com a demanda de mulheres dos distintos estratos sociais? Uma das mais importantes características do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM é a sua ligação muito forte com os movimentos sociais, construída historicamente desde 1983, quando foi fundado. O NEIM nasceu precisamente desta vinculação social, através de suas fundadoras, mulheres comprometidas com lutas históricas que incluíam a luta contra a ditadura militar, por mais mulheres na política, pelas conquistas de mulheres da classe operária, só para citar alguns exemplos. Uma outra marca do NEIM é a sua composição diversa, em que dialogam pesquisadoras das mais diferentes áreas do conhecimento. A produção acadêmica do NEIM é visceralmente ligada aos movimentos sociais, rompendo de modo inequívoco com uma falsa dicotomia entre a academia e a sociedade, muitas vezes referida em diferentes contextos. Este engajamento aos movimentos sociais está mais explicitado no livro Mulheres e movimentos – estudos interdisciplinares de gênero, que é o volume 16 da Coleção Bahianas, uma publicação do NEIM, que organizei com a Professora Lina Maria Brandão de Aras e que traz a produção de mestras e doutoras egressas do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo. Esta publicação evidencia de modo inequívoco a profunda e orgânica ligação entre a produção teórica do Programa e os movimentos sociais, como também a sua inserção no campo da educação em seus diferentes níveis. 6) Deixe uma mensagem para os leitores da Edufba. Penso que acompanhar as publicações da Edufba é imprescindível para quem quer saber o que de fato a UFBA produz de interessante, com relevância social. Assim, recomendo o acompanhamento de perto do que a Edufba publica, por docentes e estudantes da universidade. No mais, gostaria de dizer que a minha trajetória é um exemplo de que sempre é possível se reinventar, ou começar um novo caminho, com disposição para os desafios e sem medo do novo. Espero que possa inspirar jovens mulheres e homens para as nossas lutas. _______________________________________________________________________________________________________ ¹WALD, Chelsea; WU, Corinna. Of Mice and Women: The Bias in Animal Models. Science 26 March , 2010: Vol. 327. no. 5973, pp. 1571 – 1572.