Bruno Ramos Gomes
No Espaço do Autor de julho, Bruno Ramos Gomes, autor de O uso ritual da ayahuasca na atenção às populações de rua, conversou com a gente sobre os temas do seu livro, sobre o seu trabalho na ONG Centro de Convivência É Lei e sobre suas motivações para articular o trabalho com psicologia e a atenção às pessoas em estado de vulnerabilidade social. Bruno Ramos Gomes possui graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2006), e mestrado em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (2011). Atualmente é coordenador de ensino e pesquisa do Centro de Convivência É de Lei, além de psicólogo clínico e Acompanhante Terapêutico.
Por João Bertonie e Mariana Trindade
Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional e acadêmica. Como surgiu o seu interesse pela psicologia e, posteriormente, pela Saúde Pública? O que te levou a estudar a intersecção destas duas áreas do conhecimento? Fui estudar psicologia para tentar entender e cuidar do ser humano, que com suas dinâmicas de vida nos mostram o quanto não somos seres tão racionais. Porém, fui percebendo que ficar apenas com o olhar e o conhecimento psicológico traz o risco de se individualizar muito as questões, o que gera quase uma culpabilização do sujeito pela situação, não necessariamente dando caminhos para se resolver os problemas. Por isso fui buscar estudar na Faculdade de Saúde Pública com um antropólogo, e dessa forma tentar entender melhor o lugar do sujeito dentro do contexto. Por qual motivo decidiu estudar a ayahuasca especificamente? Quais as principais características do chá alucinógeno que podem contribuir para o tratamento de depressão e a dependência de drogas? Eu já havia conhecido o chá, pois o tinha estudado durante meu trabalho de conclusão de curso em psicologia. Ao mesmo tempo, já trabalhava com pessoas em situação de rua e usuários de drogas. Nos contextos de uso do chá são constantes os relatos de cura para dependência através da ayahuasca. Em 2005 conheci a Unidade de Resgate Flor das Águas Padrinho Sebastião, estudada no livro, que fazia um trabalho de recuperação com pessoas usuárias de drogas em situação de rua. Ao conhecer o trabalho e acompanhar os tratamentos, fui vendo que o chá era um elemento em meio a outros, que eram diversas práticas terapêuticas de tradição mestiça indígena amazônica. Enquanto isso, os estudos acadêmicos sobre o chá partiam já diretamente de uma compreensão de "cura" advinda da medicina ocidental. Vi então a necessidade de se explorar e entender com mais rigor o que era este terapêutico que já vinha acontecendo, numa lógica tão diferente da nossa. Como resultado do estudo, vi que o chá estimula uma nova forma de autopercepção, em que os efeitos do chá fazem a pessoa olhar para a própria vida e começam a construir novos planos de vida para si, em que estejam mais felizes e com mais bem estar. Este uso acontece dentro de um ritual, onde o contexto de uso e as relações tem grande importância também, diferente do uso que se faz dos medicamentos, por exemplo, onde o lugar em que se toma o remédio pouco importa. Há ainda algum preconceito ou tabu que cerca a interpretação das pessoas em relação ao uso do chá no tratamento destes “males ocidentais”? De forma geral, ainda se vê o chá como uma substância perigosa por ser considerada alucinógena. Este termo, antigo da psiquiatria, pouco explica o efeito do chá, pois não são exatamente alucinações que as pessoas tem. De forma mais fidedigna com a experiência, se pode dizer que o chá leva a um estado de "sonhar acordado", em que a experiência vivida pode trazer sentidos importantes sobre a vida da pessoa da mesma forma que a interpretação de sonhos. Além disso, a ciência busca compreender este efeito terapêutico a partir da sua própria compreensão de "terapêutico", o que não ajuda a entender os casos de cura dentro da lógica mais "nativa". Por sua origem e representação na mídia, a Cracolândia costuma ser um ambiente muito estigmatizado pelas pessoas, gerando noções pejorativas e mal-estar acerca do lugar. Como foram as suas primeiras experiências convivendo nesta região? Como é o seu relacionamento com os frequentadores? O que te levou a trabalhar na Cracolândia? Tanto o estudo sobre o chá quanto meu trabalho na cracolândia foram coisas que busquei por serem bem desafiantes e por serem situações sociais que precisam ser melhor compreendidas. Apesar do medo inicial, sempre fui muito bem recebido pelos usuários de drogas lá. Quando os usuários percebem que você os considera "gente", que não quer o mal deles e quer ajudá-los a se cuidar, são super receptivos e amigáveis. O convívio com os usuários sempre me ensinou muito sobre dependência, uso de drogas, situação de rua e sobre a sociedade como um todo, pondo em cheque diversas teorias sobre estes assuntos, que na verdade não batem com a realidade. A relação com os usuários na verdade não é a parte mais difícil do trabalho lá. Lidar com a corrupção e a violência policial, as ingerências politico-eleitoreiras e a precariedade da rede de atenção sempre foram desafios muito maiores do que o diálogo com os usuários em si. O que é e como atua a ONG Centro de Convivência É Lei? Como funciona a estratégia de redução de danos? O Centro de Convivência É de Lei é um centro de convivência de baixa exigência para pessoas em situação de vulnerabilidade, muitas delas usuárias de drogas. No trabalho de acolhimento de usuários na convivência e na abordagem de rua nas ruas do centro de SP e da Cracolândia, os profissionais da equipe buscam se aproximar dos usuários e ajudá-los a reorganizar sua vida em busca de melhor bem-estar e qualidade de vida, numa perspectiva de redução de danos, onde a abstinência não é a única e nem a primeira meta a ser atingida, pondendo ser buscada caso o usuário queira atingi-la. A instituição luta por mudanças nas políticas que atingem esta população para que sofram menos violência por parte do estado e da sociedade e possam viver melhor e de forma mais estável.