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Cecília Maria Bacellar Sardenberg

 Neste “Espaço do Autor", Cecília fala sobre suas pesquisas e seus livros “Violência de gênero contra mulheres: suas diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento” e “Gênero e ciências: mulheres em novos campos”. Neles são apresentados ensaios, resultantes de estudos acadêmicos e  pesquisas de campo do sobre a Aplicação da Lei Maria da Penha e revela a reduzida presença feminina no campo científico e a invisibilidade daquelas que lograram romper as barreiras patriarcais, respectivamente.

 Formada em Antropologia Cultural na Illinois State University (1977),  Cecília é uma das fundadoras do NEIM-Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, atuando como Professora Titular no Departamento de Antropologia e nos Programas de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da UFBA. Faz parte do Coletivo Editorial da Revista Feminismos, e lidera o Grupo de Pesquisa do Projeto Trilhas do Empoderamento e Mulheres e integra o Comitê de Gênero e Sexualidade da Associação Brasileira de Antropologia-ABA.

A antropóloga e pesquisadora Cecília Maria Bacellar Sardenberg passou anos dedicando-se ao que chama de “antropologia feminista”, sendo uma das principais pesquisadoras na área. Seus trabalhos em estudos feministas, feminismo e políticas públicas, gênero e desenvolvimento e gênero e corpo, são essenciais para todo esse momento político social contemporâneo.

 1. Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional e acadêmica.

 Sou o que se costuma denominar de ‘antropóloga puro sangue’: concluí Bacharelado (Illinois State University-USA), Mestrado e Doutorado em Antropologia Social (Boston University)! Fiz também estágios pós-doutorais como Visiting Scholar no Institute of Development Studies-IDS, University of Sussex, Inglaterra, sempre voltada para o campo da antropologia feminista. Original de São Paulo-SP, entrei na UFBA em 1982 por via de concurso público para a cadeira de Teoria Antropológica, encontrando em São Lázaro, minha segunda casa na Bahia, outras pesquisadoras e professoras feministas, como eu, com elas criando, em 1983, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM. Hoje aposentada, continuo participando como pesquisadora do NEIM e professora do PPGNEIM, o Programa de Pós-Graduação em Estudos sobre Mulheres, Gênero e Feminismos e atuando nos movimentos feministas e de mulheres. Como coordenadora de projetos internacionais, como o Pathways of Women’s Empowerment Research Consortium e, de 2008 a 2014, Coordenadora Nacional do OBSERVE-Observatório de Monitoramento de Aplicação da Lei Maria da Penha, pude, por assim dizer, unir ‘teoria e práxis’, . Mas minha maior honra foi receber o Título de Cidadã da Cidade de Salvador em dezembro de 2012. Sou baiana de coração e de direito!

 2. Você acredita que atualmente existe uma maior exposição de casos sobre a violência contra a mulher. Se sim, isso se deve ao feminismo ou à aplicabilidade da Lei Maria da Penha que tem se tornado mais efetiva?

 A violência contra mulheres no Brasil não é um fenômeno novo. Ela está enraizada na cultura brasileira, sendo institucionalizada na nossa sociedade desde o seu início. Contudo, só passou a se tornar mais visível e questionada nas últimas cinco décadas, com a emergência dos movimentos feministas e de mulheres contemporâneos. Foram mais de quarenta anos de lutas para se criminalizar esse tipo de violência! A Lei Maria da Penha, produto dessas lutas, foi inspirada em planos de ação e convenções internacionais, ampliando a própria noção de violência para incluir, para além da violência física, também a psicológica, moral, patrimonial e sexual. Essa lei fornece medidas para se punir os agressores, bem como medidas de prevenção e proteção para as vítimas. Campanhas divulgando a Lei Maria da Penha têm contribuído para torná-la uma das leis mais populares no país. Mesmo não conhecendo toda a sua complexidade, mais de 90% da população adulta sabe que se trata de uma lei que veio para proteger as mulheres. Como consequência, amplia-se e se aprofunda a conscientização das vítimas e da população como um todo de que violência contra mulher é crime, o que, em grande parte, responde pelo crescimento do número de registros de ocorrência desse tipo de violência desde que a lei foi sancionada (agosto de 2006). Mas é certo que a subnotificação, principalmente no tocante à violência sexual, ainda é um grande problema em nossa sociedade. E assusta muito constatar o crescimento da incidência de feminicídios, ou seja, o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres, colocando o Brasil dentre os cinco países de maior ocorrência de assassinato de mulheres e exigindo a formulação de legislação específica. Além disso, tem-se observado cada vez mais casos horripilantes, de profunda crueldade, a exemplo do assassinato de Eliza Samudio, a mando do goleiro Bruno. Eliza foi torturada, morta, esquartejada e seus restos mortais dados como comida a cães ferozes, tudo porque ela exigiu pensão para o filho do casal.

 3. Quais medidas devem ser tomadas para que este número de casos não se torne ainda maior?

 A Lei Maria da Penha é hoje modelo para outros países, mas, aqui no Brasil, há um grande hiato entre a lei e a prática. Isso tem sido revelado em muitos estudos, inclusive os realizados pelo OBSERVE, sediado no NEIM, bem como pelos achados da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência Contra Mulheres, cujo relatório foi publicado pelo Senado Federal em 2013. Um dos principais problemas constatados emana do próprio sistema federalista do país: é uma lei federal, mas para sua implementação e aplicação depende de órgãos e agentes dos governos estaduais e municipais, que nem sempre demonstram a ‘vontade política’ necessária para tanto. Em um recente documento elaborado para a ONU-Mulheres de N. York, baseado nesses e outros estudos mais recentes, afirmei que, para combater e coibir a violência contra mulheres, principalmente o feminicídio, precisamos de:, 1) mais equipamentos de estado de formulação, coordenação e monitoramento das políticas, tais como secretarias, coordenadorias, conselhos da mulher, em todos os níveis de governo ; 2) mais equipamentos de estado para a implementação e aplicação das leis e políticas de enfrentamento da violência contra as mulheres, a exemplo de delegacias especializadas, juizados especiais de violência doméstica e familiar contra mulheres, agências e órgãos da rede serviços para atendimento de mulheres em situação de violência (centros de referências, casas-abrigo, casas da mulher, etc.) 3) garantia de infraestrutura apropriada para o devido funcionamento desses equipamentos e agências; 4) treinamento especializado e sensibilização para o pessoal de atendimento, a começar por juízes/as, delegados/as, agentes de polícia, integrantes de equipes multidisciplinares (psicólogas/os, assistentes sociais, etc...); 5) coordenação apropriada para a maior integração de todos esses equipamentos e agências, de sorte a poderem agilizar os procedimentos e salvar vidas; 6) registro e coleta de dados padronizados sobre violência contra mulheres para o monitoramento e ajuste das políticas e procedimentos; 7) campanhas nacionais sobre violência contra mulheres para conscientizar e formar opinião pública de apoio aos órgãos e políticas; 8 ) apoio às organizações de mulheres, principalmente as feministas, para o monitoramento de tudo isso da parte da sociedade civil e; 10) talvez o mais importante, garantia de verbas adequadas e suficientes para garantir todos os outros itens elencados. A garantia de verbas é um problema fundamental, sobretudo quando se tem notícia de que o atual governo reduziu em 75% as verbas destinadas às políticas de enfrentamento da violência. Tais políticas são políticas de mortes anunciadas...

 4. Na sua opinião, por que as pessoas continuam cometendo atos de violência, mesmo com a existência de mecanismos legais de punição?

 Ao lado da ineficácia de muitos desses mecanismos devido aos problemas mencionados, há que se lembrar que a ideologia patriarcal é o elemento base da construção de gênero no Brasil, legitimando o poder dos homens sobre as mulheres.

Essa ideologia foi institucionalizada na família colonial – patriarcal – ao ponto de colocar a vida das mulheres nas mãos de pais, irmãos, maridos: eles podiam tirar a vida das mulheres em ‘defesa da honra’ da família. Até recentemente, aliás, era comum os assassinos de mulheres argumentarem ‘legítima defesa da honra’ e serem absolvidos.

 A ‘cultura do estupro’ é parte dessa ideologia patriarcal e tem papel importante na construção da masculinidade hegemônica no Brasil. Por ‘cultura do estupro’ ou da violência sexual se entende o complexo de crenças e valores que encorajam a agressão sexual masculina e legitimam a violência contra mulheres (e meninas). Na ‘cultura do estupro’ a violência sexual é vista como sendo ‘sexy’ e a sexualidade como ‘naturalmente’ violenta, valores esses que são reproduzidos em piadinhas, canções (a exemplo do pagode baiano e do funk), telenovelas, filmes, romances, ou seja, por meio de instrumentos de reprodução da violência simbólica de gênero. Isso tudo naturaliza a violência contra mulheres, o que concorre para que esse fenômeno continue a ter alta incidência em nossa sociedade, apesar dos mecanismos existentes para coibi-lo. Um dos objetivos fundamentais da transversalização de estudos sobre gênero e diversidade nos currículos escolares é justamente desconstruir essa cultura instada pela ideologia patriarcal. Da mesma forma, campanhas e políticas de combate à violência, inclusive a simbólica (como no caso da Lei Anti-Baixaria), têm também essa função. Mas, grupos religiosos fundamentalistas, com representação nos governos municipal, estadual e federal, vêm criando toda sorte de obstáculos para se alcançar esses objetivos, retirando a discussão de gênero dos currículos escolares – um verdadeiro retrocesso !!!

 5. O número de notícias, livros e produtos audiovisuais que abordam a violência contra a mulher têm aumentado na esperança de conscientizar as pessoas sobre este problema. De que modo esses conteúdos atingem os agressores? E as vítimas?

 Considero um grande e importantíssimo avanço no combate à violência de gênero contra mulheres o notável crescimento da produção de conhecimento e divulgação de questões relativas à violência de gênero contra mulheres. Contudo, esse conhecimento só produz efeitos positivos, tanto para vítimas quanto agressores, quando fundamenta políticas voltadas para o confronto da violência contra mulheres. A Lei Maria da Penha é um exemplo da aplicação do conhecimento construído ao longo de décadas na formulação de políticas. Ela incorpora toda uma série de procedimentos legais para a proteção das vítimas, tais como as medidas protetivas, como também medidas punitivas e educativas para agressores. Essas medidas educativas são cruciais para evitar que os agressores reincidam nos crimes de violência contra mulheres, contudo, são poucos os estados e municípios que têm investido de fato na implementação desses requisitos legais da Lei Maria da Penha.

 Vale ressaltar também que o conhecimento produzido em estudos, pesquisas, surveys, etc, sobre a aplicação dessa Lei, como aqueles contidos no livro que co-organizei com a Profa. Márcia Tavares sobre violência contra mulheres, publicado pela Edufba, são importantes instrumentos para processos de monitoramento e avaliação, processos esses necessários ao exercício do controle social das políticas, ou seja, da parte da sociedade civil. Cabe, assim, a nós, atuantes nos movimentos feministas e de mulheres, termos ciência desse conhecimento para exigirmos o devido cumprimento da lei, inclusive no tocante às verbas necessárias a sua implementação.

 6. Em seu “Gênero e ciências: mulheres em novos”, você escreve que a produção científica continua sendo uma área essencialmente masculina, mesmo com a presença de muitas mulheres que pesquisam e publicam neste meio. Quais repercussões o feminismo tem causado nesse cenário?

 Sabe-se hoje que a produção de conhecimento não é uma prática dita ‘neutra’, vez que, qualquer conhecimento, seja ele científico ou não, é sempre produzido a partir de um posicionamento social, histórico, cultural. A principal contribuição do feminismo para essa discussão tem sido demonstrar que a ciência não é uma prática neutra no tocante a gênero. Conforme a Profa. Luzinete Simões, co-autora e eu ressaltamos no Prefácio do referido livro, a crítica feminista à ciência tem revelado o viés androcêntrico subjacente às diferentes áreas do conhecimento, viés esse presente, tanto na constituição e estrutura das ciências, quanto no conhecimento produzido e nas epistemologias tradicionais que lhes dão sustentação.

 Historicamente, uma das diferentes instâncias e maneiras em que gênero se constituiu como fator operante na construção do saber foi o alijamento das mulheres da produção do conhecimento científico. Até pouco tempo, havia poucas mulheres cientistas e as poucas existentes não tinham visibilidade, tampouco recebiam o devido crédito por sua contribuição. Recentemente, tivemos notícia de que o Brasil é hoje um dos países nos quais a presença feminina nas ciências se equipara em número à masculina. Sem dúvida, o feminismo contribuiu para tanto, trazendo à baila novos valores e atitudes relativas às mulheres na ciência, permitindo esse avanço em termos quantitativos. Contudo, os estudos dão conta de que as hierarquias de gênero ainda se mantém nesses espaços, estando os homens não apenas no topo das estruturas de poder, como também dominando as áreas de maior prestígio. Além disso, o viés androcêntrico permanece engrenado na produção científica, sobretudo no campo das ciências biomédicas, sendo o corpo masculino ainda o principal modelo na construção das tecnologias médicas e produção farmacológica. Ou seja, precisamos ainda provocar muitas mudanças qualitativas no sentido da construção de uma ciência livre desse viés.

 7. Deixe uma mensagem para os leitores da Edufba.

 Vivemos um momento de grande retrocesso no tocante às conquistas no plano dos direitos humanos e sociais – de verdadeira ameaça à democracia que tão duramente vínhamos construindo desde os anos 1980. O enfrentamento da violência contra mulheres por meio da Lei Maria da Penha se inclui dentre as principais conquistas dos movimentos sociais e necessita do apoio de todos os setores da sociedade para alcançar seu objetivo principal, qual seja, salvar vidas. Não podemos deixar que o descaso do atual governo para com esse objetivo nos leve à imobilidade. É hora de nos mantermos na luta para garantirmos a implementação e aplicação da Lei Maria da Penha nos moldes necessários a sua plena eficácia.

 

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