Edufba: Conte um pouco sobre sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.
Viktor Chagas: Nasci em 1982, no Recife. Cheguei ao Rio de Janeiro ainda criança. Desde muito jovem me interessei pela escrita, e esse interesse acabou me levando para a graduação em Comunicação. No mestrado e no doutorado, ambos em História, com ênfase em história política e contemporânea, procurei discutir o papel do jornalismo na sociedade moderna. Primeiro, tentando reconhecer práticas de jornalismo cidadão de base comunitária em uma favela do Rio de Janeiro, e, depois, explorando um pouco da economia política da informação e da cultura da notícia, em uma tese sobre a história das bancas de jornais. Conhecer um pouco mais sobre a linguagem do jornalismo me levou a um interesse de investigar os tabloides e veículos populares. E, mais adiante, comecei a identificar estratégias similares de comunicação entre esses tabloides e uma outra linguagem, nativa do ambiente digital, os memes de internet.
Edufba: De onde surgiu o desejo de focar suas pesquisas num objeto tão diferente como os memes?
VC: Os memes chegaram até mim pelo contato com os alunos de graduação. Eles me instigaram e criamos juntos um projeto para entender e documentar esse fenômeno, o #MUSEUdeMEMES. O #MUSEU surgiu em junho de 2015, de uma experiência iniciada na extensão, a partir de um conjunto de encontros abertos ao grande público, que carinhosamente apelidamos de #memeclubes, um misto entre um seminário acadêmico e um cineclube. Nos #memeclubes, o público é convidado a assistir a uma exibição temática curada de memes, e, em seguida, discutir determinados aspectos desses conteúdos.
Com o passar do tempo, os alunos de graduação se esmeraram em produzir uma cenografia sofisticada e achamos que aqueles encontros estavam se tornando cada vez mais mini- exposições. Foi aí que a ideia de construir um museu veio à tona. O #MUSEUdeMEMES é simultaneamente uma provocação sobre o estatuto que ocupam os museus na sociedade contemporânea e o lugar ocupado também pelos memes. Como um webmuseu, a ideia por trás do projeto é convidar todos os visitantes a uma reflexão sobre este objeto. Além disso, e paralelamente à experiência na extensão, eu comecei a identificar que os memes têm um uso político em muitos episódios recentes da nossa vida democrática. Movimentos sociais têm cada vez mais se apropriado desse repertório para levantar questionamentos. Políticos e grandes corporações têm procurado incorporar o estilo e a linguagem dos memes para se aproximar de suas audiências. E muita gente que antes não discutia política passou a discuti-la por causa do humor dos memes. Entender essas mudanças e o caráter inclusivo dos memes em relação ao debate político passou então a ser um dos meus interesses privilegiados de pesquisa.
Edufba: Como você percebe a relevância desse assunto para compreender os fenômenos comunicacionais da atualidade?
VC: Os memes são uma linguagem comunicacional nativa digital. Isso significa que eles combinam características e elementos típicos da linguagem audiovisual com referências à cultura pop em âmbito global e local. O resultado é uma superposição semântica, em que há uma metáfora construída sobre outra, uma sucessão infinita de piadas internas. Por isso mesmo, para se entender um meme é preciso conhecer bem suas referências. Muita gente acha que, para estar antenado com o significado de um meme, é preciso entender de tecnologia, é preciso conhecer e saber editar uma imagem, um vídeo, saber operar nas mídias sociais. No entanto, o meme tem, antes de mais nada, uma dimensão cultural intrínseca a ele. Para entender um meme, é preciso imergir na cultura dos memes, conhecer e reconhecer seus personagens, as situações de comicidade, seus efeitos, isto é, os memes requerem de nós uma nova experiência de letramento midiático, e, por sua vez, nos proporcionam também uma nova experiência de letramento político e social. Os memes, de certa forma, ajudam a explicar nossa cultura.
Eu sempre me remeto a uma passagem pessoal para dar conta dessa experiência. Há alguns anos, eu participei de um ciclo de encontros com professores de diferentes áreas, interessados em adotar a Wikipédia em sala de aula. A proposta era que construíssemos verbetes biográficos sobre autores de cada área ou explicações sobre conceitos específicos. Sugeri, então, ainda antes de criarmos o #MUSEUdeMEMES, que criássemos verbetes sobre memes. Alguns professores se opuseram, sob o argumento de que uma enciclopédia séria não poderia trazer conteúdos desse tipo. Eu me reportei à própria Wikipédia, em sua versão em inglês. Na Wikipédia anglófona, havia um verbete biográfico sobre Galvão Bueno, o locutor esportivo, com uma longa passagem sobre o meme “Cala Boca Galvão”. Não havia nada parecido na versão da Wikipédia em português naquela época. Para quem não se lembra, na Copa de 2010, torcedores gritaram nas arquibancadas dos estádios a frase, em reprimenda aos comentários de Galvão durante a transmissão. Um blogueiro na época criou então uma espécie de movimento. Ele inventou uma história, segundo a qual, cada vez que alguém tuitasse #calabocagalvão, estaria ajudando com um dólar uma campanha para salvar os “pássaros” da espécie galvão da extinção. Obviamente, uma pegadinha para cooptar gringos. O divertido é que muita gente caiu e continua caindo. A pesquisadora australiana Heather Horst, em certa altura, chegou a descrever este meme como a maior piada interna do mundo, porque só os brasileiros conheciam seu real significado. Essa anedota diz muito sobre a importância da cultura dos memes. Chances há que um estrangeiro conheça o locutor esportivo pelo meme e não o contrário. Os memes ajudam, portanto, a explicar como nossa sociedade se reconhece, sobre o que constrói seus significados, sobre o que ri.
Edufba: Estudando os memes, sua origem e expansão nas mídias sociais, você deve ter se deparado com dados que expressam as repetições e renovações dos tipos de memes ao longo do tempo. Diante disso, os memes têm uma espécie de “prazo de validade”?
VC: Sim e não. O conceito original de meme, que data da década de 1970, dispõe sobre um processo similar ao da seleção natural, de modo que o meme é descrito, muitas vezes, de forma simplificada, como um análogo ao gene da cultura. Nesse sentido, e de acordo com esta acepção, o meme seria uma ideia ou comportamento que se replica, entre os indivíduos e/ou através das gerações. Os principais disseminadores desse conceito inicialmente enxergavam como memes canções folclóricas, lendas urbanas, bordões populares e similares. Desse modo, uma das características do meme bem-sucedido é a sua longevidade, isto é, a condição de perdurar através do tempo.
Evidentemente, com o passar dos anos, o próprio conceito de meme foi reformulado, a partir do momento em que diferentes subculturas da internet se apropriaram da categoria para descrever a prática de criar e compartilhar conteúdos digitais em suas comunidades. Daí em diante, o meme de internet passou a caracterizar algo completamente distinto e com uma característica temporal própria, pois o ciclo de vida do humor dos memes de internet requer uma conjuntura específica. Resultado disso é que os memes de internet têm geralmente uma vida curta, com um ápice rápido de disseminação, seguido por uma queda vertiginosa. Mas há exceções importantes, com personagens que marca uma época e se tornam nacionalmente conhecidos, como Dilma Bolada ou Inês Brasil, e há também memes que se restauram e renovam sazonalmente, como os Atrasados do Enem. No fundo, é um fenômeno complexo, e tecer generalizações nem sempre é fácil. Mas os memes, sem dúvida, são capazes de contar uma história. Eles estão intimamente ligados aos acontecimentos de uma época.
Edufba: Num momento de instabilidade global como o que estamos vivendo, qual o papel do meme na sociedade?
VC: O meme cumpre uma multiplicidade de papéis junto à sociedade. O primeiro e mais importante deles é, naturalmente, o de comunicar. Os memes comunicam mensagens e estabelecem relações entre as pessoas. Por isso mesmo, por exemplo, em um momento como o que estamos vivendo, em que somos obrigados a nos manter em isolamento social, os memes podem cumprir uma função de manutenção dos laços sociais que é absolutamente relevante para que continuemos pensando e nos reconhecendo como uma comunidade. Isso porque eles nos ajudam a construir um senso de pertencimento, uma identidade coletiva, a partir do humor e do reconhecimento de significados partilhados.
Além disso, o meme também informa. Ele é capaz de descortinar conhecimento, abrir um leque novo de informações àqueles que o compartilham. Mesmo que sua linguagem seja naturalmente sintética, condensada e até mesmo superficial, o meme pode servir como uma janela para novos entendimentos. Muitas pessoas passaram a se interessar por e a discutir política, por exemplo, por causa da linguagem bem-humorada dos memes. Por fim, mas não menos importante, o meme é também um alívio cômico relevante. Ele nos permite um momento de distração e torna mais leve, ainda que esteja permeado por críticas sérias, o cotidiano.
Edufba: Deixe uma mensagem para os seus leitores e leitoras.
VC: Nós estamos acostumados a olhar para os memes como um fenômeno divertido e diversionista. Eles geralmente são lidos como conteúdos rasos e despropositados, típicos de uma cultura popular da internet. Eu convido todos a observarmos esse fenômeno de modo mais aprofundado. “A cultura dos memes” é uma coletânea que se volta simultaneamente aos pesquisadores especializados e ao leitor leigo, simplesmente interessado em conhecer um pouco mais sobre o universo dos memes de internet. O livro reúne uma quantidade ímpar de pesquisadores debruçados sobre questões como o papel do humor da internet na sociedade contemporânea, o ativismo digital e a economia da atenção nas mídias sociais. São, ao todo, dezessete capítulos, produzidos por dezoito diferentes autores, espalhados por nove países. Afinal, meme é coisa séria!