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Leandro Colling

Edufba:  É um prazer tê-lo conosco no Espaço do Autor. Conte um pouco sobre o seu percurso acadêmico e profissional e sua atual área de atuação. 

Leandro Colling: Minha graduação foi em jornalismo, na Unisinos, e fiz mestrado e doutorado em comunicação, na UFBA. Até a minha tese de doutorado, defendida em 2006, eu pesquisava mídia e eleições. Mas, desde o mestrado, em 1998, eu estudo, paralelamente, gênero e sexualidade. No entanto, depois da tese, eu mudei de campo e passei a investigar apena gênero, sexualidade e cultura. Essa mudança também foi impulsionada depois que criamos o grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade, o CuS, inicialmente no interior do Cult (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura), em 2007. Hoje o CuS cresceu, possui cinco linhas e se chama Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS). Nessa época, em 2006-2007, eu era professor substituto na Faculdade de Comunicação (Facom/UFBA); somente em 2009 eu ingressei como professor efetivo na UFBA, no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (Ihac).

 

Edufba: O livro “A vontade de expor: arte, gênero e sexualidade” foi elaborado durante o seu período como professor visitante da Universidade de Sevilha, na Espanha. Por que investigar obras de arte que tocam nas dissidências sexuais e de gênero nesse país especificamente?

LC: No meu pós-doutorado anterior, realizado em 2013/2014, que gerou o livro “Que os outros sejam o normal – tensões entre ativismo queer e movimento LGBT”, eu fiz parte da pesquisa na Espanha e percebi que muitos coletivos da dissidência sexual e de gênero estavam usando performances, vídeos e outras linguagens para questionar as normas de gênero e sexualidade. Mas, naquela pesquisa, eu não tive tempo e fôlego para contemplar essas produções. Quando eu concluí aquela pesquisa, no Brasil começava a ganhar grande visibilidade uma cena artística que também questionava as normas de gênero e sexualidade. E aí decidi investigar essa cena no Brasil junto com as pessoas do NuCuS. Essa pesquisa gerou o livro “Artivismos das dissidências sexuais e de gênero”, também publicado pela Edufba, em 2019. Ao concluir esse livro, decidi voltar à Espanha para ver como estava essa cena por lá e me deparei com várias grandes exposições, em grandes museus, sobre esses temas. Então, decidi mergulhar nesse universo e desse mergulho emergiu o livro “A vontade de expor – arte, gênero e sexualidade”.

 

Edufba: Como você definiria o termo “queer”?

LC: Queer é uma palavra em língua inglesa que foi (e ainda é, em alguns contextos) usada para insultar pessoas homossexuais ou pessoas que não parecem heterossexuais. Em finais dos anos 1980 e início dos anos 1990, começam a surgir, nos Estados Unidos, alguns coletivos que ressignificam essa palavra e que passam a usá-la em seus nomes, como o Queer Nation, por exemplo. Esses coletivos tinham propostas políticas distintas dos outros coletivos gays, que estavam mais numa pegada assimilacionista às normas de gênero e sexualidade. A pauta do casamento evidenciava, nesse sentido, o objetivo de ser assimilado pela heteronormatividade. Os vários tensionamentos no campo do ativismo começam a ser pensados por uma série de pessoas e isso vai gerar o que conhecemos como teoria ou estudos queer nas universidades. Existem vários textos sobre esse tema disponíveis no Brasil. O meu livro “Que outros sejam o normal” evidencia como esses tensionamentos aconteceram em Portugal, Espanha, Argentina e Chile.

 

Edufba: Que paralelo, se algum, pode ser traçado entre a atual cena artística queer espanhola e a brasileira? Quais aproximações e distâncias você percebeu durante o percurso de sua pesquisa?

LC: As duas cenas possuem algumas coisas em comum e também muitas diferenças. No interior da cena de cada país, também existem muitas diferenças. Algumas aproximações: nos dois países, um contingente muito expressivo de artistas está usando diversas linguagens artísticas para confrontar, questionar e problematizar as normas de gênero e sexualidade. Ao fazer isso, muitas pessoas e coletivos estão usando o próprio corpo como material fundamental para a sua produção artística. Mas o modo como isso se dá em cada país e mesmo dentro de cada país é muito diverso. Por exemplo: na Espanha, essa cena é mais internacionalizada, com a presença de artistas de vários lugares do mundo, inclusive do Brasil, é forte nas artes visuais e está muito presente nos museus, nos grandes inclusive. No Brasil, com algumas exceções, essa cena ainda não ocupou os grandes museus com a mesma intensidade que vi na Espanha. A nossa cena brasileira é feita, em sua maioria, por pessoas negras, trans, não binárias, gays afeminados e lésbicas e é super forte na música. Na Espanha, é uma cena branca e cisgênera, em sua maioria, e pouco expressiva na música, embora também existam artistas da música muito potentes, como Chenta Tsai (Puto Chino Maricón) e Rodrigo Cuevas.

 

Edufba: A obra está estruturada como um diário, um formato interessante e pouco usual nos escritos acadêmicos. O que o levou a optar por esse formato? Quais as liberdades e limitações que percebeu ao analisar as obras de arte com essa linguagem?

LC: No livro “Que os outros sejam o normal”, eu já tive como proposta escrever um texto acadêmico menos usual, mas acho que fui tímido nesse sentido. Nos últimos anos, eu tenho questionado muito por onde ando, por que usamos referenciais teóricos tidos como mais subversivos e continuamos escrevendo em um formato careta e tradicional. Dessa vez, optei por fazer o que chamei de um exercício etnocartográfico processual que me permitiu fazer uma espécie de diário de campo da pesquisa. Mas os diários de campo já são clássicos nos estudos da antropologia, não criei nada novo nesse sentido. Apenas me apropriei das reflexões em torno da etnografia e da cartografia e os conectei com o conceito de potência de Espinoza. Misturei tudo isso com as reflexões de Didi-Huberman em torno do que nos olha no que vemos. Essas misturas talvez sejam pouco usuais nos estudos que analisam obras de arte.

Na verdade, eu não tenho a pretensão de analisar obras de arte, eu me deixo afetar pelas obras, aprendo com elas, brigo com elas, amo-as, odeio algumas. Fiz tudo isso também para mostrar como foi o processo da pesquisa, algo que nem sempre aparece nos textos das nossas investigações. Para a arte contemporânea, muitas vezes o processo é mais importante do que a obra final. Por isso, eu também quis evidenciar o meu processo. Isso me deu mais liberdade enquanto pesquisador e escritor, mas esse processo também apresentou os seus limites. Por exemplo: quando propomos valorizar o processo, seria mais importante se desvencilhar ao máximo das ideias que já temos, das categorias que já temos, das teorias que já conhecemos, para valorizar o que o processo nos revela, o que ele nos ensina que ainda não sabíamos. Eu acho que, ao final, eu só consegui me desvencilhar um pouquinho. Mas, para mim, valeu a pena.

 

Edufba: Você cita Roselee Goldberg para falar do corpo não apenas como suporte para a arte, mas como o próprio material artístico. Como essa perspectiva pode nos ajudar a entender as dissidências sexuais e de gênero na arte queer e feminista contemporânea?

LC: Esse é um tema muito importante para o livro e é uma daquelas ideias que eu já tinha antes de começar a investigação. Na verdade, eu já tinha refletido sobre isso nos textos da pesquisa sobre a cena brasileira, mas eu ainda não tinha tido mais tempo para ir fundo nessas questões. Para a arte feminista e queer, assim como para os primórdios da performance, sobre a qual tratava Roselee, a performatividade de gênero (dissidente da norma ou não) e as práticas sexuais dissidentes da norma são centrais para as suas produções artísticas. Não se trata de usar o corpo como suporte, mas o corpo é a sua obra, o modo como se performatiza o gênero e também a sexualidade são as obras de arte que essas pessoas artistas nos apresentam.

Essa não é uma criação da arte queer. A arte queer radicalizou isso e sexualizou mais a cena. Antes do queer, as mulheres artistas feministas já usavam o seu gênero como obra de arte. A lista de artistas poderia ser longa. A exposição e catálogo Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, de 2018, apresentaram obras de várias artistas que poderiam ser lidas dessa forma. Destaco, por exemplo, os trabalhos da soteropolitana Letícia Parente (Preparação 1, 1975, e Tarefa 1, 1982) em que ela questiona os padrões de feminilidade e papéis de gênero atribuídos às mulheres donas de casa. Já numa perspectiva mais dissidente, os trabalhos de Ana Mendieta (como Transplante de pelos faciais, 1972) questionavam as normas de gênero.

 

Edufba: No final do livro, você põe em xeque a distinção que Judith Butler faz entre performance e performatividade de gênero. Poderia falar brevemente desses dois termos para aqueles que ainda não tem familiaridade com a teoria?

LC: Essa questão tem tudo a ver com a pergunta anterior. Se é verdade que a performatividade de gênero e as práticas sexuais dissidentes, em muitas produções artísticas dessa cena, são as próprias obras de arte que essas pessoas artistas nos apresentam, como seria possível operar com uma distinção entre performance artística e performatividade de gênero, como faz Judith Butler em determinados momentos para responder às críticas que recebeu por suas reflexões finais no livro Problemas de gênero?

Para responder às críticas de que a identidade de gênero, em sua teoria da performatividade de gênero, teria um status voluntarista, Judith Butler, em determinadas ocasiões, propôs uma diferenciação entre performance e performatividade de gênero. Nessa distinção, performance seria aquela realizada pelas artistas drag, que se caracterizaria por um ato limitado, produto de uma vontade ou de uma eleição de quem a realiza. Já a performatividade de gênero não seria caracterizada pela eleição ou agência do sujeito, mas pelo efeito repetido da norma, ainda que essas repetições nem sempre sejam realizadas da maneira como as normas desejam. Butler, em um texto, diz: “É um erro reduzir a performatividade à performance”. Eu aciono várias pessoas teóricas e/ou artistas para problematizar essa distinção realizada por Butler para ver o que existe entre a performance e a performatividade de gênero.

 

Edufba:  Que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?

LC: Apenas agradecer a atenção e pedir que divulguem os livros publicados pelas editoras universitárias como a Edufba. Nesse mercado editorial, ainda é muito difícil que os livros, especialmente os publicados no Nordeste, circulem pelo país. Essa é mais uma forma de valorizar a universidade pública gratuita e inclusiva.

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