Itan Cruz
Edufba: É um prazer tê-lo em nossa seção Diálogos. Conte um pouco sobre a sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.
Itan Cruz: Entrei na Universidade Federal da Bahia (UFBA), pelas políticas de cotas raciais, em 2010, para cursar o Bacharelado Interdisciplinar (BI) em Humanidades. No BI eu tive meus primeiros contatos com a pesquisa acadêmica, primeiro por meio da Profª Drª Clélia Cortes e depois por meio do Prof. Dr. Milton Júlio de Carvalho Filho, meu primeiro orientador.
Concluí o Bacharelado Interdisciplinar em 2013 e migrei para outra graduação, desta vez, História. Neste curso pude contar com a orientação do Prof. Dr. Antonio Luigi Negro, o Gino, que me apresentou as pesquisas em História. Foi a partir das provocações, sugestões e orientações de Gino que pude conhecer o “baianismo”, que foi originalmente registrado na historiografia por Sérgio Buarque de Holanda (1972), e consistia num fenômeno político institucional que evidenciava o predomínio dos baianos entre as pastas ministeriais e no comando dos ministérios do Segundo Reinado (1840-1889). Senti falta das mulheres, das relações íntimas e de uma história mais social que agregasse as questões políticas, capaz de dar contornos mais amplos ao baianismo, indo além das grossas paredes do parlamento, abarrotadas de homens e seus rígidos protocolos. Foi então que elaborei com Gino o projeto de mestrado e fui aprovado na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, no Rio de Janeiro, onde fui orientado pela Prof.ª Dr.ª Ana Maria Mauad e onde defendi a minha dissertação de mestrado, em 2018. O livro “Jogo de Damas – Amanda Paranaguá: memória baianismo e poder na Corte do Brasil e além (1849-1931)” é resultado dessa trajetória. Gostaria de reiterar meus mais profundos e sinceros agradecimentos não só aos meus professores e orientadores da UFBA e da UFF – fundamentais em tudo isso –, mas também a todos os professores que tive antes da universidade, sem os quais este caminho não teria sido possível.
Edufba: O livro “Jogo de Damas: Amanda Paranaguá” foi seu primeiro livro publicado, poderia falar como foi a experiência de escrita e pesquisa para a construção da obra?
IC: Em julho de 2015, Gino me mostrou uma fotografia de autoria de Marc Ferrez, datada da década de 1880. Na imagem, a princesa Isabel aparecia na varanda da sua residência, em Petrópolis (RJ), ladeada por outras duas mulheres. Numa pesquisa rápida identifiquei-as: à direita da herdeira do trono estava Maria José Velho de Avellar Tosta, nascida na província do Rio de Janeiro, mas casada com um baiano, Manuel Vieira Tosta Filho; a mulher à esquerda de Isabel era Maria Amanda Lustosa da Cunha Paranaguá Dória que, além de ser casada com um baiano, Franklin Américo de Menezes Dória, era ela mesma baiana. Foi a partir daí que comecei a investir minhas reflexões na trajetória de Amanda.
Descobri que antes de morrer, em 1931, Amanda organizou, junto com seu marido, um acervo familiar. O casal escolheu o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no Rio de Janeiro, como receptáculo dos seus documentos que foram divididos em duas coleções “Coleção Barão de Loreto” e “Coleção Baronesa de Loreto”. O IHGB foi o principal local de produção do conhecimento histórico do país até pelo menos a década de 1930. Era uma Instituição intimamente vinculada à Monarquia, inclusive tendo contado com o pai e o marido de Amanda como membros. Então minha pesquisa se desenvolveu entre idas ao IHGB, mas também à Biblioteca Nacional, ao Arquivo do Museu da Justiça, ao Arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, ao Arquivo Nacional e ao Museu Histórico Nacional. O processo de escrita foi um intenso desafio. Eu estava escrevendo sobre a trajetória de uma mulher de cor notável e esquecida da História do país. Foi um desafio que requereu e ainda requer muita responsabilidade.
Edufba: A sua obra tem como objetivo ser uma biografia de uma figura que não é tão conhecida pelos brasileiros quando se fala do período imperial do país. O que motivou esse objeto de pesquisa?
IC: A descoberta de Amanda foi uma sequência de felizes coincidências. Não tive muito controle sobre as coisas. Eu pesquisava e ia encontrando mais documentos, mais informações, mais lugares para pesquisar e a pesquisa foi se desenhando.
Edufba: Amanda Paranaguá era conhecida por ter uma relação próxima com a família de Dom Pedro II e por ser uma pessoa não branca que alcançou um local de prestígio na sociedade brasileira da época. O que você achou mais curioso na trajetória de vida dessa figura?
IC: Na verdade, a cor de Amanda não aparece como um marcador esmagador na maioria das fontes. Apenas dois jornalistas citam-na como “morena” e “mulatinha”, informações fundamentais para compreendê-la. Vale afirmar que havia muitas outras pessoas de cor em lugares de prestígio como ela. Podemos pensar, por exemplo, Francisco Jê Acaiaba de Montezuma, visconde de Jequitinhonha; João Maurício Wanderley, barão de Cotegipe; André Rebouças e muitos outros que ainda estão por serem apreendidos como pessoas negras.
O que achei mais curioso na trajetória de Amanda foi sua atuação política, que não era algo incomum às mulheres como ela, mas que, por meio dela, Amanda, pude ver essa agência com maior materialidade. E sim, o fato de ter sido uma mulher de cor realça ainda mais essa desenvoltura, na medida em que ainda não é muito comum encontrarmos mulheres de cor da elite oitocentista com essa atuação e em pleno centro do poder imperial.
Edufba: Diante do cenário de ataques às minorias sociais e de uma insurgência cada vez maior das pautas do movimento negro, na sua opinião, qual seria a importância de uma obra como “Jogo de Damas: Amanda Paranaguá”?
IC: O livro pretende contribuir na denúncia e desconstrução da histórica política de invisibilização das pessoas negras que ainda está em vigor no Brasil. Esta pesquisa procura oferecer outras vivências de pessoas de cor para além da escravidão. Certamente o cativeiro é um fator marcante na trajetória das pessoas negras deste país. No entanto, seus grilhões não podem e não conseguem sintetizar toda a complexidade, multiplicidade e diversidade das experiências da população negra deste lado do Atlântico. Amanda foi uma mulher livre, abastada, versada na música, no inglês e no francês. Uma intelectual, atuante politicamente, dotada refinada de expertise social.
Edufba: Finalizando a nossa entrevista, que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?
IC: Gostaria de dizer que, a partir da trajetória de Amanda, eles e elas possam refletir sobre a complexidade das trajetórias das pessoas negras no Brasil e o quanto ainda tem para ser descoberto. A Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, da qual faço parte, tem trabalhado enormemente para evidenciar homens e mulheres em seus mais diferentes contextos históricos, regiões, classes sociais, posições políticas, etc.. Gostaria que “Jogo de Damas” fosse só o início, uma provocação, para que as leitoras e os leitores possam buscar por muitas outras vidas que precisam ser lembradas, conhecidas e divulgadas.
Jogo de damas Amanda Paranaguá: memória, baianismo, poder na corte do Brasil e além, 1849-1931
O livro do autor Itan Cruz é uma biografia de Maria Amanda Lustosa da Cunha Paranaguá, nascida em Salvador, em 1849, e falecida no Rio de Janeiro, em 1931; ela guarda certas peculiaridades em sua experiência social. Apontada como mulher de tez “morena” ou notada como “mulatinha” e integrante de uma família baiana que experimentou significativa ascensão social a partir do processo de Independência do Brasil, Amanda Paranaguá conquistou a destacada posição de dama da herdeira do trono. Ao longo da leitura, é possível acompanhar a trajetória dessa mulher de cor que ocupou as principais casas do tabuleiro político do Império, vivendo à sombra do poder imperial, atrás do trono, e agora de frente para a História.