Início / Diálogos / Christine Zonzon

Christine Zonzon

Edufba:  É um prazer tê-la conosco no Espaço do Autor. Conte um pouco sobre o seu percurso acadêmico e profissional e sua atual área de atuação. 

Christine Zonzon: Obrigada pelo convite para estar nesse espaço. Responder à essa primeira pergunta levanta o desafio de escolher e sintetizar, em meio à diversidade de experiências “profissionais” ao longo da vida, e arriscar desmerecer algumas delas que não parecem se enquadrar na trajetória coerente e prestigiosa de uma “intelectual”. Na verdade, costumo dizer que a lista das profissões que exerci é digna de uma poesia surrealista, indo de salva-vida à padeira, artesã, pescadora, professora de francês, barraqueira, tradutora, antropóloga e muito mais. O fato é que só entrei na universidade aos 38 anos, isto é, já como uma mulher adulta, mãe solo, além de “gringa”, ou seja, um perfil bastante distante da trajetória padrão de um estudante universitário.  Isso teve como efeito que os ditos “saberes acadêmicos” foram sempre apreendidos e compreendidos por mim dentro desse background de experiências práticas muito densas e heterogêneas. Iniciei com um curso na área de literatura e língua lusófonas (EAD, Universidade de Grenoble – França) e segui para a área de Ciências Sociais, com mestrado (2007) e doutorado (2014) na UFBA. Essas áreas de conhecimento deram-se em função do meu interesse em pesquisar o universo da capoeira do ponto de vista das aprendizagens corporais/culturais. Nessa mesma dinâmica de diálogo entre experiência prática e pesquisa, tenho trabalhado mais especificamente sob a perspectiva de gênero nesses últimos anos e isso expressa e condensa um acúmulo de observações e experiências que dizem respeito à opressão machista, principalmente, mas não exclusivamente, na capoeira. Em suma, diria que a inserção e a produção na academia foram formas de aprofundar as minhas vivências existenciais, culturais e políticas e de criar instrumentos para atuar no mundo.

 

Edufba: Qual foi o seu primeiro contato com a capoeira e que significado esse esporte tem na sua vida hoje?

CZ: Consegui iniciar a capoeira em 1989, depois de algum tempo já com desejo de me aproximar dessa prática – não falo em “esporte” pois vale lembrar que a capoeira angola se percebe como arte, ritual e cultura. Foi no Forte de Santo Antônio, aonde uma amiga me levou, me falando que era o melhor lugar para conhecer a “verdadeira capoeira raiz”, a capoeira angola. A relação com a capoeira tornou-se de imediato um eixo central na minha vida. A capoeira transforma a percepção do mundo e de si; ela abre para modos de expressão, ação e relação completamente diferentes das formas cotidianas e naturalizadas de comportamento. Essa abertura para outro mundo se dá através do corpo, do movimento, da desconstrução do nosso esquema corporal “normal”; vive-se um mundo “de ponta a cabeça”, o que significa muito mais do que “invertido”.  Foi essa dimensão que mais me interpelou e me levou a pesquisar quais eram as formas de aprendizagem que fundamentavam esse universo ritual, seus saberes e valores. Sem esquecer de uma segunda dimensão que subjaz à relação muitas vezes “apaixonada” que nós, capoeiristas, alimentamos com essa prática: a capoeira está associada à história e à vivência de uma luta de resistência contra a opressão. Sinto que a capoeira detém um potencial de libertação ímpar. Digo “potencial” porque, paradoxalmente, estruturou-se em formatos hierárquicos rígidos que vão na contramão da liberdade.  Então minha relação com a capoeira desde sempre é uma busca de explorar esse potencial libertador, e para isso foi preciso romper com as estruturas dos grupos de capoeira ditos tradicionais que reproduzem violências e discriminações, notadamente, sexistas.

 

Edufba: Para aqueles pouco familiarizados com o tema, poderia apresentar um pouco da história da mestra de capoeira Ritinha da Bahia (Rita de Cássia Santos de Jesus)? 

CZ: A história de Ritinha da Bahia está sendo resgatada no livro “O legado de Ritinha da Bahia:  Mulheres no Jogo da resistência” e também no documentário “Mulheres da Pá-virada”, que realizei junto com o coletivo Marias Felipas, em 2019. Em ambos os casos, no livro e no filme, a narrativa origina-se em entrevistas e conversas que tive com Ritinha e alguns de seus familiares desde o ano de 2016, quando iniciei uma pesquisa de pós-doutorado com foco na invisibilização das mulheres no universo tradicional da capoeira. Ritinha gostava muito de contar sua história. E a história de Ritinha era quase que exclusivamente em torno da sua trajetória de capoeirista. Ela dizia que tudo que aprendeu na vida foi por meio da capoeira, pois não tinha sido escolarizada por não possuir registro de nascimento. Ela tinha um grande orgulho em ter sido aluna de Mestre João Pequeno de Pastinha e usou a camisa da Academia de capoeira angola fundada pelo Mestre (Ceca) até o último dia da sua vida, mesmo depois de ter sido desconsiderada (eufemizando um pouco) pelos membros dessa Escola e de ter ficado sem espaço para dar aulas de capoeira. Um outro ponto forte da narrativa de vida de Ritinha era a viagem que ela fez à Inglaterra a convite de um amigo italiano, de quem ela tinha sido professora de capoeira nos anos 1990, na Bahia. Ela ressaltava que “lá fora” tinha sido valorizada e reconhecida. E, por fim, nos últimos anos da sua vida, ela pôde experimentar um pouco mais dessa valorização quando passou a participar de seminários e eventos organizadas por coletivos feministas como as Marias Felipas e, pela primeira vez, ser reconhecida como Mestra “mais velha” e respeitada de modo condizente com a ética e a filosofia proclamadas pela capoeira angola.

 

Edufba: Que características da capoeira de angola, praticada por Mestra Ritinha, diferenciam-na de outros estilos? 

CZ: A diferença entre as diversas tradições ou linhagens de capoeira é um tema polêmico que mobiliza tanto a comunidade da capoeira quanto as produções acadêmicas de/sobre capoeiristas. Até hoje, a legitimidade é um campo em disputa entre angoleiros, regionais e contemporâneos (os três principais estilos de capoeira). Na realidade, vejo a capoeira como multiplicidade e percebo que cada grupo tem sua forma de interpretar e recriar a tradição, sendo as discussões sobre legitimidade, em grande parte, impulsionadas por lutas por poder (simbólico e material também). A minha pesquisa de doutorado (publicada pela Edufba, em 2017, sob o título “Nas Rodas da Capoeira e da vida: Corpo, experiência e tradição”) buscou retratar essas versões diferentes da capoeira, focando nas aprendizagens corporais e rituais. Ritinha, que era angoleira formada em uma das academias mais tradicionais da Bahia, acreditava que a capoeira angola era mais autêntica do que os outros estilos como a capoeira regional ou a capoeira contemporânea. A capoeira angola é apelidada de capoeira mãe, capoeira raíz, capoeira tradicional; ela remete a uma identificação com a matriz cultural africana em suas dimensões de ritualidade e espiritualidade. Ritinha incorporou os saberes da capoeira angola tanto no que diz respeito a seu estilo de jogo e de movimentos quanto na parte da musicalidade, do manejo do berimbau e do repertório de cantigas tradicionais. Como dizia: “faço tudo igual meu mestre me ensinou”… E, como boa mandingueira, também era capaz de entrar em qualquer roda de rua, no Mercado Modelo ou no Terreiro de Jesus, e jogar com todo tipo de capoeiristas. Ela tinha essa inteligência e sabedoria.

 

Edufba: Na introdução do livro “O Legado de Ritinha da Bahia”, você afirma que as contribuições de Ritinha foram apagadas da história do renascimento da capoeira angola em Salvador, nos anos 1980. Trata-se de uma omissão deliberada? Como tem sido o processo de resgatar essa história? 

CZ: A invisibilização e a opressão da mulher são deliberadas? Até que ponto? São questões muito difíceis de responder. Acho que há uma parte impensada, com certeza. As pessoas acostumaram-se a repetir a mesma velha narrativa de que a capoeira tradicional era (e é) um universo masculino. Os capoeiristas falam isso e os pesquisadores também! E foi desmentido muito recentemente pela pesquisa da historiadora Juliana Foltran sobre a capoeira do início do século XX nas ruas de Salvador, onde a autora encontrou muitas mulheres negras com a mesma valentia que seus pares homens. No caso da narrativa da capoeira angola na Bahia, só foram destacados homens, as lideranças fizeram árvores genealógicas das linhagens dos angoleiros nas quais não há uma única mulher! O caso de Ritinha é particularmente ilustrativo porque ela aparece em documentários filmados na TV francesa no início dos anos 1990, dando aula na academia de João Pequeno. Mas quem conta a história hoje omite o nome dela. Ela era uma mulher preta, pobre e da pá-virada, como fala a pesquisadora Nildes Sena! Então o resgate da história dela se faz particularmente necessário e observo que, ao contar a sua história, vamos despertando memórias de pessoas que conviveram com ela e nunca tinham evocado o seu nome, porém agora trazem lembranças e detalhes sobre a trajetória dela na capoeira que confirmam a importância e o protagonismo dela na época.

 

Edufba: Ao seu ver, qual o principal legado que Ritinha deixa para as próximas gerações de capoeiristas?

CZ: Creio que a palavra “resistência” é a que melhor sintetiza o legado de Ritinha. É um legado para as mulheres capoeiristas de hoje, que já entram em um universo que questiona (mesmo que minimamente) a cultura machista dos grupos de capoeira e precisam de muita coragem e inspiração para transformar as relações de poder impostas pelas lideranças (homens, em geral, mas nem sempre). Então, Ritinha, já no início dos anos 1980, enfrentou uma discriminação enorme. Cumulando sexismo e racismo, sofreu situações de exclusão, mas não desistia da capoeira, nem de falar em voz alta o que ela pensava. E ela fazia tudo isso sem ter parceria, apoio, nem ideologia para sustentar a sua luta por espaço.

 

Edufba: O livro trabalha a capoeira a partir de uma perspectiva feminista, trazendo a voz de diversas(os) autoras(es). Quais os desafios e recompensas que surgiram durante o processo de estabelecer um diálogo entre esses dois campos? 

CZ: A perspectiva feminista que estrutura o livro opera uma desconstrução do universo machista da capoeira, no sentido de propor uma narrativa múltipla, heterogênea em seu conteúdo e em suas formas (entrevistas, narrativas e artigos), e principalmente horizontal. Então, com o livro e a história de Ritinha, não se tratou de colocar no feminino a grande narrativa heroica dos mestres de capoeira, mas sim de ter Ritinha como figura de referência e inspiração para elaborar uma outra história da capoeira. Como falar de nós mesmas, mulheres que praticam e/ou pesquisam a capoeira? Como falar das mulheres que foram nossas referências na capoeira? São questões que exploramos na prática de escrever esse livro que vem romper com as perspectivas geralmente encontradas no tratamento dado ao tema da capoeira. O resultado foi muito gratificante para mim e creio para todas as autoras. Os textos se entrelaçam, algumas histórias contadas por várias vozes dialogam sem nenhuma combinação prévia. Ritinha aparece aqui e acolá nas lembranças de algumas das autoras, como também surgem relatos das violência e exclusões vivenciadas por essas mulheres capoeiristas em grupos, épocas e lugares diversos. Acredito que a opção por publicar também cinco artigos acadêmicos escritos por mulheres e versando sobre o gênero na capoeira é um marco importante nessa literatura que até hoje é também dominada por homens escrevendo sobre homens. A produção acadêmica sobre a capoeira tem sido cúmplice do apagamento e da desvalorização da mulher na capoeira, ignorando as evidências da sua participação histórica e do seu protagonismo atual.

 

Edufba: Que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?

CZ: Sei que muitos leitores e leitoras do livro são capoeiristas e gostaria de enfatizar a importância de repensar a capoeira como luta de libertação e de resistência a todas as opressões. O racismo, o sexismo, a homofobia, entre outras discriminações, são temas tabus nos grupos de capoeira. Essa realidade é ocultada por discursos que idealizam a prática e suas lideranças. Espero que o livro “O legado de Ritinha da Bahia” leve os leitores e leitoras a refletir, ler, escrever e dialogar sobre essas questões com seus coletivos.

Acompanhe as Novidades

Cadastre seu e-mail em nossa newsletter

Siga a Edufba
nas redes sociais

instagram