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Edvard Passos de Santana Neto

Edvard Passos é arquiteto, encenador e dramaturgo e é o entrevistado do Espaço do Autor de fevereiro. Nesta conversa, ele falou sobre os temas tratados em Aventuras do maluco beleza, texto teatral sobre a infância de Raul Seixas, lançado no fim do ano passado pela Edufba e que integra a Coleção Dramaturgia. Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia em 2002, Edvard concluiu recentemente seu mestrado no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas (PPGAC/UFBA). Além disso, ele colabora no Theatre Architecture Working Group, integrando a Federação Internacional de Pesquisadores de Teatro. Fora do ambiente acadêmico, Edvard Passos escreveu e dirigiu espetáculos como A Prole dos SaturnosFlamengo e Compadre de Ogum, tendo recebido o Prêmio Braskem de Melhor Diretor por este último, em 2015.

João Bertonie

Conte-nos um pouco sobre sua trajetória acadêmica, profissional e pessoal. Como surgiu o seu interesse pelo texto teatral?

 Eu transito na fronteira das artes cênicas e da arquitetura.

 Sou graduado em arquitetura e urbanismo pela UFBA, mas, antes mesmo do vestibular, fundei um grupo de teatro, tirei a carteira provisória de ator e tive minhas primeiras experiências profissionais.

 Durante um bom tempo, minha vida foi estudar arquitetura e trabalhar como ator e assistente de direção nos grupos de teatro que fiz parte. Também nesse período, nasceu o vínculo com a pesquisa: arquitetura efêmera, mega eventos de rua e habitação popular.

 Concluída a graduação, tive escritório de arquitetura, fui educador de design no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e, já com o registro profissional definitivo de ator, trabalhei nas montagens teatrais de Deolindo Checcucci e Fernando Guerreiro: Maria Quitéria (2003)Raul Seixas - A Metamorfose Ambulante (2005)Flicts (2005) e Shopping n’ Fucking (2008), entre outras.

 Entre 2007 e 2009, fui, exclusivamente, arquiteto da Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, na diretoria de planejamento de habitação popular. Foi uma oportunidade para analisar minha relação com as artes cênicas, que, nesse período, silenciosamente, foi reconfigurada. Passei a escrever obras dramáticas pelo impulso irrefreável de levar ao palco temas originais e para me assegurar da integridade da ideia matriz. Via isso no exemplo de Deolindo Checcucci, que escrevia e dirigia suas peças. Outro estímulo que tenho ao escrever é o desejo de manter o espectador hipnotizado pelo que acontece em cena do início ao fim. Hoje, sou pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e tenho uma empresa de produção cultural. Da junção dessas duas atividades, nasceram espetáculos como A Prole dos SaturnosFlamengo e Compadre de Ogum. Neles, exerci a função de dramaturgo, diretor e produtor. PeloCompadre de Ogum, recebi o prêmio de Melhor Diretor do Prêmio Braskem 2015. Como pesquisador, faço parte dos grupos Dramatis e Pé na Cena, sou membro da International Federation of Theatre Research - IFTR, onde colaboro com o Theatre Architecture Working Group e organizei o grupo de pesquisadores em cooperação internacional PAUST - Performance, Architecture, Urbanism, Space and Theatre. Como resultado dessa caminha interdisciplinar, tenho me dedicado à investigação teórica e à prática continuada de encenações em espaços pouco usuais.   E quanto ao seu interesse por Raul Seixas?

 Raul foi a trilha sonora da minha adolescência. Colecionei a discografia, fui aquele fã que tinha uma visão ampla da obra. Também atuei no elenco do espetáculo biográfico que contava a história de Raul e passei a conhecer um pouco mais da vida pessoal do artista, através dos relatos da família Seixas.

 Portanto, Raul Seixas foi um tema estratégico para o enfrentamento do desafio de encenar e escrever minha primeira obra dramática, no âmbito profissional. Como Aventuras do Maluco Beleza se tornou uma montagem do Núcleo do Teatro Castro Alves, uma das circunstâncias de maior prestígio que um artista pode viver em Salvador, esse foi meu batismo de fogo.

  Como se deram a pesquisa e a concepção da ideia de retratar as aventuras fictícias do pai do rock? 

 Raul chegou de vez em minha vida quando eu tinha 11 anos. Meu tio Tato me deu uma coletânea das músicas do Maluco Beleza numa fita K7 e eu fiquei maravilhado com aquele universo infindável de enigmas. Então, anos depois, quando Deolindo Checcucci me convidou para integrar o elenco do musical biográfico Raul Seixas – A Metamorfose Ambulante, pulei de cabeça. Foi aí que eu conheci um outro Raul, um Raul de dentro de casa, que ganhava contornos definidos através dos depoimentos da pessoa que mais tempo viveu ao lado dele, seu irmão caçula, Plínio Seixas.

Plínio acompanhou os ensaios e eu interpretava ele na peça. Ao interpretar Plínio, exercitei a contemplação de Raul através dos olhos de um irmão. Por mais de cem vezes subi ao palco para ser o irmão de Raul (encarnado, no espetáculo, brilhantemente por Nelito Reis). Mas foi durante um ensaio, quando Plinio me contou que o termo Maluco Beleza era apenas uma das dezenas de classificações para os seres humanos que ele havia criado com o irmão na infância, que eu deixei a tietagem de lado e minha intuição acendeu o sinal de alerta. No mundo de Raul e Plinio haviam muitos outros malucos: Malucos-EntendeMalucos-Não-EntendeMalucos Brabeza e Maluco Beleza era tão somente o tipo de maluco que Raul queria ser. Raul e Plinio criaram personagens, criaram Mêlo, o cientista maluco, que propunha aventuras. O mundo de Raul e Plínio possuía idioma próprio para que ninguém soubesse o que eles conversavam e isso não é nenhuma figura de linguagem. Eles criaram mesmo uma língua que só eles entendiam! Aquilo me fez perceber que a obra que conhecemos do Raul era uma espécie de ponta de um iceberg.  Era a infância de Raul e Plínio a fonte criadora, a fonte geradora, a nascente das águas da criação.

Então, ao lado de Ivan e Silvana, delineamos um universo fictício, cuja construção havia começado há 50 anos por Plininho e Raulzito. Ivan trouxe as preciosas histórias do pai Plinio e do tio Raul, além de um jeito de ser muito típico dos Seixas e Silvana trouxe um imprescindível alicerce teórico dos mitos gregos. Estendemos as tempestades de ideias até o ponto de definirmos um argumento para a primeira história e, baseado nesse argumento, eu escrevi essa dramaturgia, publicada pela EDUFBA.  

Aventuras do maluco beleza é o único dos seus textos com certo apelo infantil. Como você percebe a resposta das crianças que assistem às montagens da sua peça?

 Eu já imaginava que uma peça do Raul direcionada para crianças teria reverberação. O poder de Raul junto aos pequenos já tinha sido comprovado no especial para a TV Plunct-Plact-Zoom, onde a música Carimbador Malucomarcou toda uma geração. Eu mesmo havia me tornado um fã, na transição da infância para adolescência.

Eu ouvia a reação das crianças durante a peça, as risadas, os comentários inesperados, divertidos, o entusiasmo com as músicas e, principalmente, a atenção vidrada na trama ou na encenação. Não ouvi choro, nem desistências, muito pelo contrário. Percebi que a peça segurava o interesse de crianças com idades diferentes por motivos diferentes. O interesse ficava ainda mais claro quando a peça acabava e muitos subiam no palco, observavam a nave cenográfica, corriam para conversar com os atores caracterizados.

O site Vaca Amarela, dedicado aos pequenos, fez um lindo vídeo, uma reportagem onde acompanhou três crianças que foram ver Aventuras do Maluco Beleza desde a espera no foyer até a volta para casa:https://www.youtube.com/watch?v=n6Uce-6vF7A

 No vídeo, é possível constatar como a obra de Raul continua facilmente assimilada por eles e como a experiência de ver a peça provoca uma inquietação e uma eletricidade.

 Alguns pais, com quem tive a oportunidade de conversar depois, me disseram que passado bastante tempo, os filhos continuavam a brincar em casa de viajantes do espaço, como Raulzito e Plininho. E, mais recentemente, a filha da atriz Camila Sarno, nascida em 2010, no mesmo ano de estreia da peça e também batizada com mesmo nome da minha personagem Luna, ao assistir em 2015, pela primeira vez, Aventuras do Maluco Beleza, tornou-se uma fã declarada. Coleciona recortes de jornal e cola na porta do quarto. Pede sempre pra mãe colocar as músicas de Raul e segue interessada no retorno da peça.  

Se em Compadre de Ogum, seu texto mais famoso, você usou Jorge Amado e a sua Bahia, quais foram as referências utilizadas para a construção de Aventuras do maluco beleza

 Eu queria falar de um Raul em estado pueril, um Raul solar, livre das mazelas da estrada do rock. Queria falar de um Raul brilhante, no nascedouro de sua alma de artista. Eu queria entender e descortinar os componentes presentes na infância dele, que formataram o gênio, o ídolo, a estrela do universo pop que viria a se tornar na idade adulta.

 Para mim, os alicerces de tudo estavam na leitura do Don Quixote, no surgimento do rock’n roll e na corrida espacial. Nessa tríade de acontecimentos, em que está mergulhada a infância dos irmãos, que eu vi a matriz da alma do artista que explodiu na década de 70. O Don Quixote era a leitura de cabeceira dos pequenos Raulzito e Plininho. Eles iam dormir embalados pelas palavras de Cervantes, proferidas pelo próprio pai, Sr. Raul. É difícil dimensionar a repercussão do Don Quixote para qualquer pessoa, sobretudo para indivíduos numa fase de formação da personalidade. Pouco depois, Elvis Presley dobrava a juventude a seus pés, nos requebros rompedores de paradigmas comportamentais. E ainda, a década de 50 e 60 estava ambientada pela tensão fina de uma guerra fria, paranóica, onde Russos e Norte Americanos disputavam a conquista do espaço.

 Por isso o maluco beleza, tal qual Don Quixote; por isso o roqueiro-irreverente-rebelde, tal qual Elvis; por isso o moço do disco voador, tal qual a ficção cientifica oriunda da corrida pelo espaço. É sobre essa mesma tríade que edifiquei a construção imagética de Aventuras do Maluco Beleza.

 Poderiam ser outras referências? Claro! Raulzito não tem limites!  

Por fim, deixe uma mensagem para os leitores da Edufba

Que grande privilégio nós temos em contar com uma editora tão realizadora e tão presente na comunidade universitária e na nossa cidade. Na verdade, não existem fronteiras para Edufba, que segue desbravadora dos limites do universo, assim como Raulzito e Plininho na peça. A própria publicação deAventuras do Maluco Beleza é uma prova dessa coragem, dessa predisposição à conquista de outros campos. Afinal, o livro integra a Coleção Dramaturgia e inaugura um momento de ampliação a área de atuação da editora, que passa a publicar além dos trabalhos científicos, também obras dramáticas. Dessa forma, presta um inestimável serviço às artes cênicas da Bahia e do Brasil.

 Espero que gostem de Aventuras do Maluco Beleza e divirtam-se tanto quanto eu me diverti ao escrever. Às vezes eu tinha crises de riso na frente do computador, sem acreditar nas maluquices que surgiam inspiradas nas brincadeiras de infância dos irmãos Seixas. E espero também que o livro possa servir como uma espécie de game para os filhos de vocês, ou que sirva para inspirar jogos. E que traga também lúdicas reflexões, especialmente aquelas relacionadas à liberdade do ser.

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