Edufba: Conte um pouco sobre sua vida e trajetórias acadêmica e profissional.
José Roberto de Andrade: Minha vida não foi e não é diferente da de milhões de brasileiros. Filho de operário e costureira, nasci na periferia de São Paulo, comecei a trabalhar, oficialmente, aos 14 anos e não parei até hoje. Sempre estudei em escola pública e, graças a ela e a bons amigos, aprendi a gostar de ler (gosto se aprende e se discute), embora não compreendesse tudo que lia. Trabalhando e estudando, batalhei por uma vaga na graduação em letras na Universidade de São Paulo (USP), em que também fiz o mestrado. Tornei-me doutor na Universidade Federal da Bahia (UFBA), na qual pude me dedicar ao estudo da obra de Eça de Queirós. Considero que minha formação e meus títulos são méritos sociais. Nas escolas públicas onde estudei, há suor do trabalho de gerações, e esse suor “assina” todos os nossos diplomas. Pensar assim permite compreender, em perspectiva social e histórica, a importância da educação pública e do meu trabalho como educador. Desde a graduação, comecei a me tornar professor e não vou terminar em vida, porque o processo é contínuo. De 2012 até hoje, estou me tornando professor no Instituto Federal da Bahia, o Ifba.
Mas vamos falar do nosso assunto:
“Cozinha Literária de Eça de Queirós”, obra que escrevi no doutorado e que a Editora da UFBA publicou. Como o título sugere, o livro trata da comida (e do sexo) na obra do escritor português Eça de Queirós. No processo de pesquisa e elaboração da tese, em vários momentos, o percurso do professor/educador alinhou-se ao de leitor e pesquisador da obra eciana. Vou destacar um: os textos de Eça, escritos no século XIX, estão vivos e atuais, por isso despertam, também pela comida e sexo, a atenção de adolescentes no interior da Bahia. De 2013 a 2014, lecionei no Ifba-Jacobina, cidade da Chapada Diamantina, a 340 quilômetros de Salvador. Em um desses anos, nas turmas do segundo ano do Ensino Médio Integrado, combinamos ler “O Crime do Padre Amaro”, primeiro romance da fase realista de Eça de Queirós, publicado pela primeira vez em 1875, na Revista Ocidental, e republicado, depois de revisão do autor, em 1876 e 1880.
Lemos e discutimos vários trechos em sala – no Ifba, entendemos que a leitura é habilidade que se aprende socialmente, experimentando – e as(os) estudantes perceberam a perspectiva crítica do texto eciano e a relação de personagens, cenas e espaço com a realidade cotidiana jacobinense. A centralidade espacial, política e econômica da Igreja Matriz em Leiria, cidade portuguesa onde está ambientada a trama, pode ser observada em Jacobina. A gula, a luxúria, a hipocrisia e as ambições políticas de Amaro e de outros padres foi motivo de discussão. Também falamos de gravidez não programada, do lugar, em certa medida, subalterno das mulheres – as Amélias e Leopoldinas também andam pelas ruas de Jacobina –, do machismo das sociedades portuguesa e jacobinense. Várias (os) estudantes perceberam a importância das cenas gastronômicas e notaram que a culinária portuguesa está presente, também, no cotidiano das cidades baianas: arroz, cozido, cabidela, capão recheado, sarrabulho… tudo regado a vinho, também tradição em algumas famílias jacobinenses (e mais recentemente produzido em escala na região). Cativadas(os) pelo texto, pelas personagens, pela trama e pela comida, as(os) estudantes sugeriram, como atividade de encerramento do semestre letivo, um almoço literário, em que seriam lidos trechos da obra e servidos os mesmos pratos do jantar do Abade da Cortegaça, uma das personagens mais gastronômicas do romance: melhor cozinheiro da diocese, lia as obras de culinária da época, sabia receitas de cor e, nas palavras do próprio Eça, “nas missas dominicais, dava conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho” (Queirós, v. 1, 1997, p. 166).
As meninas e meninos do Ifba, como carinhosamente costumamos nos referir a elas(es), encarregaram-se de selecionar os trechos para ler, estudar receitas, pesquisar os ingredientes e integrar as famílias ao processo de elaboração dos pratos. O almoço foi um sucesso de literatura, música, culinária… Muitos foram os momentos significativos e um deles não esqueço: muitas(os) estudantes descobriram, surpreendidas(os), nos cadernos de receitas de mães, tias, avós e vizinhas (algumas portuguesas ou delas descendentes), receitas dos pratos servidos no jantar do abade da Cortegaça.
Destaquei esse episódio, porque quero enfatizar que outros autores permitiriam esse processo ativo e crítico de leitura do texto literário, mas só os textos escritos por Eça de Queirós nos demandam essa observação complexa e crítica de nossos processos identitários de constituição política, religiosa, arquitetônica, gastronômica, sexual… Só ele, de lá de seu século XIX, diz tanto sobre nós, cidadãos e cidadãs do século XXI. E só numa escola pública, laica e de qualidade, como o Ifba, essa leitura poderia ser feita.
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Edufba: Que trajeto levou você a dedicar seu trabalho a esta análise? E como você chegou nela?
JRA: Comida e sexo são temas universais e essenciais. Não existimos sem os dois e, desde a concepção, com ou sem prazer, estamos imersos nos sistemas de educação do paladar e das práticas sexuais. A reflexão mais acadêmica sobre a alimentação iniciou-se no mestrado, mas a necessidade de incluir a literatura e, especificamente, Eça de Queirós aconteceu depois, alguns anos antes de eu ingressar no programa de Doutorado em Literatura e Cultura, na UFBA. Os motivos são muitos. Vou elencar os três mais significativos:
1) Os textos de Eça. É impossível não enxergar a importância da comida e da sexualidade na obra do escritor português. Nosso ilustre Machado de Assis, já em 1878, leu O Primo Basílio e fez uma crítica ácida ao livro, porque entendeu que Eça demonstrou uma exagerada preocupação com os princípios da escola realista: “O Sr. Eça de Queirós não quer ser um realista mitigado, mas intenso e completo” (ASSIS, 1997, p. 908). A preocupação teria levado o escritor português a se deter em cenas acessórias, como “o longo jantar do Conselheiro Acácio” e exagerar no “sal” do romance: “o espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas” (ASSIS, 1997, p.907). Ou seja: os apetites viscerais, segundo Machado, marcariam “o tom” do livro e não poderiam ser eliminados, mesmo que se expurgassem várias cenas. Se Machado de Assis tivesse a perspectiva de toda obra, veria que comida e sexualidade não eram preocupações acessórias de escola. As duas já estavam na primeira versão de “O Crime do Padre Amaro” e ganharam evidência em outras narrativas, como “O Primo Basílio”, “A Relíquia”, “O Mandarim”, “Os Maias”, “As Cidades e as Serras”, “A Ilustre Casa de Ramires” e “A Correspondência de Fradique Mendes”. É impossível passar pela obra de Eça sem considerar a comida e a sexualidade.
2) O livro de Maria José de Queiroz, “A Literatura e o gozo impuro da comida” (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994). Nesse livro, a autora procura demonstrar o importante papel da gastronomia na literatura de língua portuguesa e, diferentemente de outros estudiosos, não se restringe a falar de pratos e receitas. Destaca, por exemplo, que “o apetite instrui as mais variadas formas de comportamento” e determina “as reações instintivas, as peculiaridades de caráter e demais pronunciamentos da individualidade” (QUEIROZ, 1994, p. 203). Maria José de Queirós me levou a entender que, em Eça, a comida não é mero tema decorativo. O escritor português, “instruído na fisiologia do gosto, leitor de Flaubert e Zola, dispensa-lhe o desvelo de um aficionado à nona arte e a atenção de um discípulo do realismo” (QUEIROZ, 1994, p. 202).
3) O amor. No percurso, me apaixonei por duas mulheres interessadas em comida e sexo, principalmente em ler sobre esses temas. Elas indicaram bibliografia, sugeriram interpretações e influenciaram minhas escolhas e decisões.
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Edufba: Existe alguma razão específica para a seleção das cinco obras utilizadas?
JRA: Eça de Queirós deixou uma obra vasta que infinitos mestrados e doutorados não dariam conta de analisar. Como eu tinha um doutorado só, tive de fazer um recorte e selecionei as narrativas publicadas em vida, da fase “realista” (uso aspas em realistas, porque essa classificação não é pacífica). Segundo Carlos Reis, “em vida [...] Eça contemplou e considerou, até às últimas consequências, um conjunto relativamente escasso de títulos: de exclusiva autoria queirosiana” (REIS, 2002, p. 28). São eles “O Crime do Padre Amaro” (1875/1876/1880), “O Primo Basílio” (1878/1887), “O Mandarim” (1880), “A Relíquia” (1887) e “Os Maias” (1888).
Esse recorte, como qualquer outro, exclui importantes obras que mereceriam livros e teses inteiras, mas me levou a selecionar e analisar, com mais atenção, as narrativas que Eça “selou” como suas. A comida e a sexualidade, no entanto, são chaves importantes de leitura para toda a obra eciana, incluindo os outros romances, os contos, os textos de imprensa, as narrativas de viagem, a correspondência e os almanaques. E o recorte não impede que os sabores de outras obras sejam também sentidos nas que me propus a analisar.
Edufba: A partir dos estudos feitos para elaboração do livro, qual a relevância desta correlação entre a comida e o sexo no trabalho de Eça de Queirós?
JRA: A comida e o sexo são motivos de dois pecados capitais bem populares: a gula e a luxúria. E as personagens ecianas são fascinantemente pecadoras. Para além do pecado, Eça entende que o paladar e a sexualidade são social e historicamente constituídos. Ele escreveu um texto exemplar intitulado “Cozinha Arqueológica”, publicado em 1893, na Gazeta de Notícias. Nesse artigo, ele afirma que “a mesa constituiu sempre um dos fortes, se não o mais forte alicerce das sociedades humanas”. Por isso, “o caráter de uma raça pode ser deduzido simplesmente de seu método de assar a carne”. Basta dizer “o que comes, [e] dir-te-ei o que és” (Queirós, 1997, v. 3, p.1226). O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos prazeres da cama: diga-me quem comes (para destacar a dupla acepção do verbo comer) e…
O caráter das personagens (e de todos os outros elementos da narrativa) ecianas está marcado pela comida e pela sexualidade, que não se reduzem ao “que” e “quem” se come. O caráter também está relacionado ao “como” (escabicha os dentes com as unhas? devora a comida? trincha bocadinhos? bebe moderadamente? é piteireiro? estimula discussões? cala-se, comendo?) e ao “com quem” (com a amiga de infância? com a confidente? com os padres hipócritas? com os homens de seu círculo, que só o elogiam? com a irmã, com quem vive uma relação incestuosa?).
Esse acréscimo exige uma reformulação da frase de Eça: diga-me o que/quem comes, como comes e com quem comes e dir-te-ei quem és. A reformulação é apropriada, pois toda a obra do autor de “Os Maias” se alicerça fortemente nas práticas culinárias e sexuais. O prazer à mesa é privilégio de personagens que aprendem e se educam para o saber comer. A sedução e a satisfação dos apetites sexuais só são possíveis aos que desenvolveram ou herdaram, em seu percurso, o “saber e o sabor da sexualidade”. E isso não significa que as personagens que sabem e podem comer e amar são heroínas e heróis das narrativas. É necessário averiguar os detalhes, comparar, observar. Uma aparente “vilã”, como Leopoldina, de “O Primo Basílio”, por exemplo, pode ser interpretada como uma heroína de um futuro não tão controlado pelos homens. Ela sabe comer e sabe amar, mas é uma mulher de espírito livre presa numa sociedade patriarcal e machista, por isso é tida pelos homens (principalmente os maridos) como “prostituta”, “pão e queijo”, porque, apesar de casada, tem a coragem de expressar e satisfazer alguns de seus desejos: mantém marido e amantes, louva os amores homoafetivos da adolescência, não deseja ter filhos e, se os concebesse, não hesitaria em fazer um aborto, toca piano, canta, come o extravagante bacalhau com alho e bebe champanhe, sem se empanturrar nem se embebedar.
Leopoldina é uma heroína apontando para um futuro em que as mulheres têm direitos iguais aos homens e decidem seus destinos. E essa interpretação está lá, oferecida no romance, para quem der atenção ao que/quem, como e com quem come a fascinante, linda e livre Leopoldina, mulher do século XXI, aprisionada nos limites políticos e morais de uma sociedade conservadora do século XIX.
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Edufba: Como a observação desta relação interfere na compreensão do leitor?
JRA: No que diz respeito às personagens de “O Crime do Padre Amaro”, por exemplo, as leitoras e leitores que derem atenção para essa relação, vão perceber que as (os) que sabem comer cometem o pecado da gula e da luxúria: comem os acepipes e têm à disposição, se desejarem, as melhores mulheres. Cônego Dias e Amaro, por exemplo, demonstram grande apetite, gastronômico e sexual, e usam seu poder político e social para satisfazê-lo. E não precisam, para isso, “perverter a moral vigente”. A sexualidade entre membros da igreja é tema de discussão na obra, mas, na sociedade conservadora que está delineada no romance, padres são homens e podem “gozar”, desde que preservem a decência. Por isso os crimes cometidos por Amaro não se restringem a seduzir e violar a jovem Amélia e, depois, matar o próprio filho. O pecado de Amaro foi escolher uma mulher solteira; deveria ter seduzido uma casada. Viver a sexualidade não significa, portanto e necessariamente, perverter a moral, mas conviver com a moral vigente, que aceita – e perdoa – o pecado.
As(os) que não sabem comer, embora possam ter poder, não seduzem. “Estouram” de tanto comer, caso do abade José Miguéis, ou acabam nas tabernas, comendo iscas e bebendo vinho de terceira, como João Eduardo, pretendente de Amélia e rival de Amaro, e Gustavo, o tipógrafo comunista que defende a revolução, mas exclui dela as mulheres, demonstrando que revolucionários poderiam ser tão machistas quanto os reacionários.
As(os) que passam fome contrapõem-se, criticamente, à abundância e são tratados com desprezo ou piedade. É o caso do pedinte que, durante o jantar oferecido pelo abade da Cortegaça, vem resmungar padre-nossos para receber de Gertrudes, a “ama do abade”, somente meia broa, revelando a hipocrisia dos padres sentados à mesa, que devoram o capão recheado e bebem o caríssimo vinho do Porto, safra 1815, enquanto debatem a virtude da compaixão. Mas só deram meia broa ao pobre e o enxotaram em seguida.
Esse delineamento sucinto dos tipos gastronômicos e sexuais de “O Crime do Padre Amaro” indica que, ao ler a obra eciana, não podemos desconsiderar o que e quem, como e com quem as personagens comem, bebem e amam. Comida e sexo constituem identidades sociais e precisamos ser “arqueólogos”, culinários e sexuais, se quisermos bem compreendê-las.
Edufba: Deixe uma mensagem para os seus leitores e leitoras.
JRA: Leitoras e leitores, se vocês tiverem de escolher entre Eça de Queirós e os autores que dele falam, não pensem duas vezes: leiam os textos de Eça. Se sobrar um tempinho, leiam “Cozinha Literária de Eça de Queirós”.
Referências
ASSIS, Machado. Eça de Queirós: O Primo Basílio. In: ________________. Obra Completa. V. III. Rio de Janeiro; Aguillar, 1997, pp.903-913.
QUEIRÓS, Eça de. Obra Completa: quatro volumes. Organização geral, introdução, fixação dos textos autógrafos e notas introdutórias Beatriz Berrini. Rio de Janeiro: Aguilar, 1997.
QUEIROZ, Maria José de. A Literatura e o gozo impuro da Comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.
REIS, Carlos. Os silêncios de Eça. IN: ZIBELBERMAN, Regina [et al.]. Eça e Outros: Diálogos com a ficção de Eça de Queirós. Porto Alegre: EDIPUCRS - PUC RS, 2002.