Edufba: É um prazer tê-la em nossa seção Diálogos. Conte um pouco sobre a sua vida e
trajetórias acadêmica e profissional.
Flávia Marinho Lisbôa: Sou capixaba e há vinte anos passei a viver na Amazônia, no Pará,
com meus pais e um irmão, onde constituí minha trajetória acadêmica e profissional. Sou
filha de pessoas que migraram para a Amazônia como reflexo do contexto de pobreza no
sudeste do país e um contexto também em que pessoas pobres e pessoas pretas não entravam
na universidade. As dificuldades para pessoas desse recorte social fazer uma graduação numa
universidade pública fortalece a relevância das políticas públicas na interiorização das
universidades federais e no aumento das verbas na educação. Essas políticas possibilitaram
uma virada nas muitas dificuldades historicamente sustentadas pela colonialidade e naquele
momento possibilitou que eu me tornasse a acadêmica e profissional que sou hoje. Hoje sou
doutora em Letras/Estudos Linguísticos (UFPA) e o livro publicado pela Edufba é fruto da
tese do meu doutoramento. Até 2021 era professora na Universidade Federal Rural da
Amazônia (Ufra), onde presidi a comissão que instituiu a política de acesso específico e
diferenciado para indígenas e quilombolas nessa instituição. Hoje sou professora da
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), na Faculdade de Educação do
Campo, no Programa de Pós-Graduação em Letras (Poslet) e também possuo coordenação no
Núcleo de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (NUADE). Na universidade Federal
do Pará (UFPA) também atuo no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL).
Edufba: O seu livro “Racismo linguístico e os indígenas Gavião na universidade” reflete
sobre a diversidade de sujeitos que têm conquistado acesso na universidade pública brasileira
nos últimos anos e o papel da língua como uma potente linha de força da colonialidade.
Poderia explicar para seus leitores e leitoras o que motivou esse objeto de pesquisa?
FML: Nos estudos linguísticos muito se falou sobre preconceito linguístico. Porém, ao
analisar a presença indígena na universidade e as situações de desprestígio que sofrem por
terem em sua oralidade diferenças marcadoras da “indianidade” que os constitui, não poderia
pensar em outro termo para isso que não fosse “racismo linguístico”, pois sabemos que o
racismo estrutural, fruto de nossa história colonial, relega aos povos indígenas e negros o
lugar de feio, inferior, atrasado e outras classificações negativas em nossa sociedade, como
manifestação de uma hierarquização racial entre essas pessoas e os corpos que carregam
referências europeias, seja nos traços fenótipos, seja nos bens e valores socioculturais, como a
língua. Demonstração disso é a valorização que nossa sociedade confere às línguas
estrangeiras da Europa, e também norte-americana, e a desvalorização das, aproximadamente,
180 línguas indígenas nacionais. O tratamento díspare conferido às línguas orais e línguas
com tradição escritas, como no caso das línguas indígenas e das europeus, no nosso caso o
português de Portugal, teve então papel preponderante no contato entre esses povos nesse
território nomeado Brasil e as relações de dominação estabelecidas entre eles desde então.
Assim é que chegamos hoje ao ponto no qual a língua do colonizador, a portuguesa, é
assumida pela maioria dos brasileiros com orgulho em detrimento do apagamento das demais
línguas e variações do próprio Português. Estabeleceu-se, então, um sentido político-
ideológico para hierarquização de línguas/variedades linguísticas entre inferiores e
superiores, de acordo com o prestígio social de seus falantes, situação problematizada por
linguistas como Maurizio Gnerre.
Edufba: Poderia explicar mais detalhadamente de que forma a língua exerce esse papel de
ser um instrumento de opressão?
FML: Quando aponto a desumanização dos indígenas e africanos no processo de colonização
não me refiro apenas a esse tempo longínquo, mas também à atualidade, com atualização de
novas e refinadas ferramentas de opressão colonial ao longo do tempo. Essa, como chamo no
livro, “colonialidade linguística” fomenta a opressão na sociedade tanto (1) na negação de
representatividade na língua à diversidade de existências que não cabem no padrão
hegemônico que é masculino, branco, heteronormativo, cisgênero e classista; quanto (2) na
operacionalização de uma variedade de prestígio da norma padrão da língua em espaços de
poder que impede nesses sítios a circulação dessa diversidade de sujeitos socialmente
marginalizados pelos recortes de classe, raça, gênero e sexualidade, por exemplo; e também
(3) no não reconhecimento das línguas dos povos colonizadas, como é o caso dos línguas
indígenas. Com isso, proponho compreender os processos sociohistóricos e discursivos que
tornam o código linguístico instrumento de exclusão numa sociedade movida pela
colonialidade, numa troca mútua: a colonialidade precisa da língua para se materializar nas
relações e práticas sociais, e a imposição da língua europeia, o português, em padrões
protegidos e compartilhados entre uma elite foi a forma como a hegemonia, ao longo da
história desse território, apagou e continua eliminando a possibilidade de circularem por
espaços de prestígio (como a universidade) pessoas indígenas e negras, hierarquicamente
racializadas na colonização. Essa barreira se dá pelas diversas razões sociais, econômicas e
políticas que estabelecem os empecilhos para a parcela pobre da população (que em sua
maioria é negra) acessar o código linguístico de prestígio, efetivando-se esse processo como
mecanismo de dominação/segregação.
Edufba: Nos agradecimentos da obra, você menciona os alunos e lideranças Gavião
Kyikatêjê, Akrãtikatêjê e Parkatêjê. De que forma essas pessoas colaboraram com a obra e
como você avalia a presença deles no espaço universitário?
FML: Eles colaboraram no trabalho de campo na etapa da pesquisa e também acolheram a
obra, reconhecendo sua importância para suas lutas em torno da língua, que nós sabemos tem
implicações para toda existência e resistência indígena, pois é na/pela língua que as
cosmologias, a forma de ver e existir no mundo, se processam. Por isso destaco sempre que o
livro não fala de língua, apenas, ou da permanência indígena na universidade, apenas. Ao
abordar essa temática que o livro traz estamos, na verdade, jogando luz sobre o genocídio em
curso desde 1500 contra os povos originários (os quais vivem nesse território antes de ele ser
chamado Brasil, é importante salientar) destacando a colonialidade estruturante que exclui
esses sujeitos e a população negra de seus direitos. Nesse sentido, a presença dos Gavião na
universidade, assim como outras sociedades indígenas, significa, na verdade, uma atualização
dos modos de (re)existência dessas sociedades contra a histórica eliminação social, onde a
língua tem papel central, tanto que ela foi sistematicamente enfocada pelos governos para
efetivar a eliminação desses povos. A extrema violência que sofrem os indígenas no contexto
amazônico potencializa a importância da instrumentalização acadêmica com a ampliação das
formas de luta contra as injustiças que não tomam notoriedade pública, não alcançam
visibilização midiática, tornando a Amazônia um contexto muito forte de racismo e de
legitimação de práticas coloniais. Essas violências vão desde o não acesso à direitos básicos
de saúde e educação, da poluição de seus territórios e rios, da invasão de suas florestas, da
não demarcação de seus territórios, até o estupro de suas mulheres e crianças e assassinatos.
Evidencio o racismo linguístico no contexto acadêmico como uma violência à cosmologia
desses povos, sendo uma expressão do racismo estrutural, que se manifesta principalmente
em tensões que envolve de fato a eliminação física.
Edufba: Diante do cenário de ataques às minorias sociais e de desmantelamento das
universidades públicas, na sua opinião, qual seria a importância de uma obra como “Racismo
linguístico e os indígenas Gavião na universidade”?
FML: A atualidade dos acontecimentos históricos evidencia novas posturas e rupturas sociais
e acadêmicas, tensionadas pela problematização das normalidades tradicionalmente aceitas
em torno de gênero, raça, classe e sexualidade, por exemplo. A língua é um dos enfoques
também contemplados nessas abordagens, que questionam reproduções de gênero bem como
raciais na linguagem e é justamente essa reflexão que o livro provoca. Em alguma medida,
uma tese defendida com essa temática, já que foi o doutoramento que resultou no livro,
sinaliza a consolidação científica e institucional de percepções epistemológicas decoloniais,
logo o reconhecimento do espaço acadêmico como marcadamente racista, colonial e
patriarcal, como um microcosmo da sociedade como um todo. A recente (falamos de
aproximadamente 20 anos) entrada na universidade de grupos historicamente desprestigiados
no Brasil, empurra para o limite as necessidades de transformações do âmbito acadêmico,
como sempre foi reivindicado ao longo da história na sociedade de forma geral. A entrada
desses grupos na universidade não está desgarrada de práticas insurgentes na sociedade como
um todo, mobilizadas e materializadas na circulação com maior força de discursos não-
hegemônicos, especialmente pelas possibilidades alternativas de comunicação que a Internet
tem possibilitado nos últimos anos. Esse livro, então, é um dos fios desse tecido que tem
asfixiado preceitos hegemônicos que sustentam as opressões raciais na sociedade brasileira.
O livro é fruto desse momento histórico que estamos vivendo na sociedade como um todo e
aponta que a universidade, como instituição que reproduz as relações sociais brasileiras,
também sente frontalmente esses tensionamentos.
Edufba: Finalizando a nossa entrevista, que mensagem gostaria de deixar para os seus
leitores e leitoras?
FML: Principalmente, agradeço a generosidade de quem se lançar nesse diálogo comigo ao
ler o livro, pois sabemos que o mercado editorial disputa ferrenhamente a atenção dos leitores
e ser lida numa sociedade como a nossa é um enorme privilégio, considerando as diversas
ordens que dificultam as possibilidades de leitura. Com o livro espero reforçar princípios para
transformação social desse lugar de onde falo/atuo, que é o da língua/linguagem, por outro
lado, reforço, não entendam essa demarcação como uma limitação de área ou discussão,
considerando a característica imanente à língua de permear toda a nossa existência. Nesse
entendimento é que tomo a língua como um fio que costura diversos fatores de ordem social,
permeando interesses diversos, seja da nossa história, da nossa cultura, da nossa estrutura
como sociedade, ou mesmo das nossas subjetividades individuais, desde que pensemos tudo
isso sob o viés colonial, onde a língua/linguagem tem papel fundamental. E a partir desse
conjunto de fatores se evidencia na nossa discussão a necessidade de ampliar nas
universidades públicas, e em outros espaços de poder, a presença de pessoas pretas, indígenas
e LGBTQIAPN+. Há muito o que ser feito ainda, mas os avanços que aconteceram foram
históricos e isso só foi possível porque tivemos políticas públicas no sentido de tentar minorar
essas desigualdades. Sob a pressão dos movimentos sociais, o poder público precisou
reconhecer a existência desses problemas, precisou reconhecer que o racismo é estrutural em
nossa sociedade e que necessitaria construir legislações para isso, como a lei de cotas, por
exemplo. Nesses últimos anos esse reconhecimento governamental não existiu. Ao contrário,
toda reivindicação por igualdade foi ferozmente atacada, demonstrando que cada direito
antirracista alcançado precisa ser atentamente vigiado e protegido.